A coerência das incoerências?

Por Manuel Lopes da Costa, Empresário

Esta semana fomos novamente surpreendidos com a notícia que muitos já vaticinavam:

“25 Abril: DGS confirma que ‘existem condições’ para o desfile comemorativo” (in dn.pt de 20/04/2021). E a pergunta que se impõe é: Onde está a coerência disto tudo? KOMMÉ possível, senhores governantes? Não tenho absolutamente nada contra o 25 de Abril nem o facto de se poder comemorar essa importante data, bem pelo contrário. Mas, quando a restauração sofreu, a hotelaria sofreu, os atores, os músicos e todos os envolvidos na cultura sofreram, milhares de negócios nacionais sofreram, a educação (alunos, professores, auxiliares) sofreram, a população que, ainda hoje, não pode livremente cruzar a fronteira terrestre para Espanha sofreu — e todos continuamos a sofrer — em pleno estado de emergência se autoriza um desfile, não podemos ficar indiferentes. Para todas as atividades o governo preconiza e impõe alternativas. Mais, multa sem piedade quem não cumpre. É o teletrabalho obrigatório até ao final do ano; é o recolhimento ao fim de semana e feriados às 13:00 (restaurantes fechados, clubes e atividades desportivas fechados, lojas fechadas, etc.); é a proibição de socializar a partir das 22:30 nos restaurantes e cafés, bem como de comprar o quer que seja, ou de praticar qualquer desporto a partir das 21:00 nos dias de semana. E para uma comemoração não se arranja alternativa? Para uma comemoração que, basicamente, será composta de discursos e palavras de ordem, não podem ser usados os meios tecnológicos de comunicação remota? Não podem ser criados audiovisuais altamente motivadores e congregadores? Não pode esta comemoração ser realizada de outra forma? E o 1º de Maio? Certamente que será igual, todos os indícios assim o levam a crer. Refere a DGS que haverá regras. Regras? Aquelas que a população nunca cumpre, muito menos nestes eventos? Santa inocência, ou pior: consentimento esclarecido. Estou em crer que, depois destas duas manifestações populares, lá virão outra vez os governantes dizer aos portugueses que foram surpreendidos como aconteceu no ano passado: “O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, reconheceu esta segunda-feira que tinha uma ideia ‘mais simbólica’ para se assinalar o 1.º de Maio quando abriu a porta à comemoração da data na última renovação do estado de emergência.” (in publico.pt de 4/05/2020).

Muito sinceramente, os regimes que limitam as liberdades e movimentações dos cidadãos mas que não prescindem de grandes comemorações políticas cheias de protagonistas (só os autorizados) com bandeiras e palavras de ordem sempre existiram, nunca esperei foi ter que vivenciar isto no meu país. Muitos dirão que estou a exagerar, mas pensem bem nisto. Um grito de indignação impõe-se.

A somar à anterior, outra incoerência: esta semana o país, ainda a desconfinar mas com alguns concelhos a retroceder, foi igualmente surpreendido com o facto de “O Presidente da República e o Primeiro-Ministro estarem esta terça-feira em Andorra no primeiro de dois dias da XXVII Cimeira Ibero-Americana” (in Observador.pt 20/04/2021). Pergunto: Então como é? O teletrabalho (ou a telemanha como carinhosamente já é apelidada por muitos) só serve e só é obrigatória para as empresas? Em que é que esta cimeira, onde basicamente são discursos atrás de discursos, não podia ter sido realizada recorrendo a meios de comunicação remota? Então estes servem para trabalhar, para dar aulas, mas não servem para os políticos se ouvirem uns aos outros? Mais, dos 22 países que fazem parte da cimeira só 5 estiveram representados fisicamente, Portugal claro está foi um deles e logo pelo seu Presidente da República e pelo seu Primeiro-Ministro. Ou seja, até aqui levámos uma lição de civismo dos outros. Sinceramente, perdeu-se uma excelente oportunidade para dar o exemplo. “Faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço” (caso contrário, multo-te) parece ser o lema dos nossos governantes. E depois fica tudo admirado, indignado, quando a população em geral não respeita as regras de distanciamento social.

Falando do ensino à distância, fomos igualmente informados que o “Ministro da Educação admite falhanço do ensino à distância. Tiago Brandão Rodrigues disse recear que muitos alunos percam vários anos letivos, por causa dessa forma de ensino.” (in RTP 18/04/2021). Mas, atenção senhores responsáveis pela educação nacional, não é só a perda de anos letivos que é preocupante. É igualmente a perda de capacidades sociais. O ensino presencial, na escola, molda comportamentos cívicos de vivência em sociedade. Privar as crianças e os jovens adolescentes, bem como os jovens adultos, dessa convivência terá reflexos no tipo de cidadão e profissionais que teremos no futuro. Muitos de nós já nos preocupávamos com a quantidade de horas que muitos desses jovens passavam nas redes sociais. A confraternização em vez de ser física era muitas vezes digital e o trabalhar em grupo resumia-se a jogar jogos de guerra numa plataforma digital. Isso por só si já era motivo de preocupação. Aliado a esse facto, a realidade de não ter havido recreio durante quase dois anos, onde as entradas na faculdade em nada diferiram das aulas do 12º ano, onde não houve praxe (as boas e não as estúpidas e violentas) para acolheram os novos alunos dento do ambiente universitário terá consequências muito nefastas. Os jovens vão ter cada vez mais dificuldade em socializar, em respeitarem-se e mesmo em envolverem-se sentimentalmente. E isso terá reflexos na nossa sociedade e nas empresas que os irão contratar dentro de três a cinco anos. Uma sociedade que sempre foi muito humana, muito carinhosa, muito abrangente e aberta a todo o tipo de culturas e novidades, irá inevitavelmente fechar-se sobre si própria, tornar-se mais egoísta e mais individualista. E assim desaparece aos poucos uma cultura que evolui para outra de caraterísticas mais semelhantes a outras de outras paragens: mais fria, menos humana, onde as crianças são expulsas de casa aos 18 anos e os velhos ficam sozinhos, desamparados e sem apoio familiar.

É urgente mudar este estado de coisas. É urgente ver mais além do que a simples perda de anos letivos. É toda uma sociedade que se pode transformar com consequências pouco desejáveis.

E para terminar, outra incoerência: “Ministro das Infraestruturas espera que viagens de avião com menos de 600 quilómetros desapareçam da Europa. Pedro Nuno Santos lamentou que os aviões deixem de fazer a ligação Lisboa-Porto, mas classificou esta possibilidade como ‘um sinal de desenvolvimento’ e afirmou ser ‘muito adepto da ferrovia’.” (in observador.pt de 19/04/2021). E então Sr. Ministro? Se assim é, se acredita tanto nisso, não será totalmente incoerente estar a apostar na TAP? A gastar o dinheiro dos contribuintes para salvar algo que não tem salvação e que o senhor diz não fazer sentido? E que dizer do novo aeroporto? Se as viagens até 600 km são muito melhores através da ferrovia, o aeroporto de Madrid fica a 600km. Para quê estar a pensar em novos aeroportos? Ficamos com os que já temos, que servem perfeitamente para trazer os turistas em nas companhias low-cost e temos Madrid a 600km para tudo o resto. Um investimento sério de que se diz adepto, na ferrovia, coloca o aeroporto de Madrid a 2:30 de Lisboa (hoje o tempo mais curto do AVE entre Madrid e Barcelona, sensivelmente a mesma distância, é de 2:30).

Estas incoerências é que são de evitar. Estou totalmente de acordo com a ferrovia. Há muito que deveríamos ter apostado nela. Agora, nem a “bazuca” que tarda em chegar conseguirá financiar a ferrovia de alta velocidade, o novo aeroporto e a TAP, pelo que, de uma vez por todas, urge fazer opções e tomar decisões estruturantes para o país.

Gostaria que fossemos menos coerentes nas nossas incoerências. Gostaria que fossemos mais preocupados com o bem de todos e menos apenas com o de alguns.  Será isso uma impossibilidade nacional? Espero, coerentemente, que não.

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