Suíça, a ‘torneira’ da Europa Ocidental, está a deixar as vizinhas França e Itália à beira de um ataque de nervos

Na margem oeste do Lago Genebra, onde se situa uma barragem estreita no poderoso rio Ródano, está uma inscrição que assinala provavelmente um dos grandes erros da diplomacia francesa: nas paredes de um antigo edifício industrial, a inscrição comemora o acordo de 1884 entre três cantões suíços que regulamentam os níveis de água deste vasto lago alpino desde essa data. No entanto, não menciona a França – embora cerca de 40% do lago seja território francês.

“A França, por alguma razão, não fazia parte do contrato”, salienta Jérôme Barras, administrador da barragem, citado pelo jornal ‘POLITICO’. Um século depois, quando o acordo foi renovado e construída uma nova barragem, Paris ainda não estava interessada – agora, o Governo francês lamenta profundamente.

A discreta aparência da barragem, conhecida como Barragem Seujet, não faz jus à sua importância estratégica para alimentar e abastecer França: segundo Barras, é o ‘robinet’, ou a ‘torneira’, do Lago Genebra, que permite à Suíça aumentar – ou diminuir – o fluxo do Ródano. E França percebeu subitamente que não consegue controlar essa ‘torneira’ enquanto luta contra a escassez de água, as secas destrutivas e o calor escaldante.

“Considerando desde quando conhecemos as alterações climáticas e os seus possíveis impactos, esta foi uma constatação bastante tardia”, indica Christian Bréthaut, professor associado de governação da água na Universidade de Genebra. Até ao momento, as autoridades suíças têm atendido aos pedidos franceses de mais água: mas Barras é direto: “Não temos obrigação de reagir a estas exigências.”

É uma receita perfeita para as crescentes tensões que Bruxelas alertou que poderiam desencadear conflitos hídricos em toda a Europa. No verão passado, conforme os rios secavam em França, Paris convenceu Berna e os cantões a iniciar conversações sobre como gerir de forma conjunta esta água vital. No entanto, a Suíça está relutante em permitir que Paris tenha qualquer influência sobre a quantidade de água que sai do Lago Genebra.

Segundo Antonio Hodgers, presidente do Governo cantonal de Genebra, os franceses devem apenas confiar que os suíços farão a coisa certa. “O que dizemos na Suíça é: ouça, diga-nos quando isto tiver sido um problema”, refere. “Quando é que a Suíça não respondeu quando a França precisava?”

No entanto, os franceses não estão convencidos. “Temos muita sorte de ter esta água de muito boa qualidade”, avança Anne Grosperrin, que supervisiona os recursos hídricos de 1,5 milhões de pessoas na cidade francesa de Lyon e arredores, a jusante de Genebra. “Mas, ao mesmo tempo, somos muito vulneráveis.”

Não se trata apenas de evitar que sequem as torneiras de cidade: uma viagem pela região, desde a nascente alpina até ao Lago Genebra e depois Lyon, mostra quantas vidas e meios de subsistência dependem da água do rio.

Dos Alpes Suíços ao Lago Genebra

O problema começa no topo – nos Alpes Suíços, onde o Ródano jorra de um antigo glaciar e desce pelos vales montanhosos até ao Lago Genebra. Graças aos seus glaciares, a Suíça funciona como reservatório de água doce da Europa Ocidental, detendo 6% de todas as reservas.

Mas o gelo alpino está a derreter a um ritmo alarmante – nos últimos dois anos, os glaciares da Suíça perderam 10% do seu volume. E há sinais de que já terá ultrapassado o “pico da água”, o que significa que o degelo glacial poderá diminuir em breve, sustenta Daniel Farinotti, glaciologista da ETH Zurique. Até ao final do século, Farinotti espera perder entre 60 e 80% dos glaciares da Suíça. E o glaciar do Ródano deverá ter uma situação ainda pior, desaparecendo por completo nessa altura, segundo um estudo da ETH.

Não quer dizer que desapareça o rio Ródano: a neve e a chuva nos Alpes continuarão a escorrer pelas encostas das montanhas quando os glaciares desaparecerem, alimentando o rio. Mas a queda de neve está a diminuir e a precipitação é muito menos fiável do que o gelo glacial, que derrete – como um relógio – nos meses mais quentes, quando a água é mais necessária.

A procura por essa água é intensa. O rio abastece 2,5 milhões de pessoas com água da torneira, transporta mercadorias de Lyon para o Mediterrâneo, arrefece reatores nucleares, produz um quarto da energia hidroelétrica de França e sustenta extensões de terras agrícolas aproximadamente do tamanho da Bélgica.

Em suma, o Ródano “é essencial para a economia da região, do país e da Europa como um todo”, garante Thomas San Marco, diretor de recursos hídricos da ‘Compagnie Nationale du Rhône’ (CNR), empresa que gere a energia hidroelétrica, transportes e irrigação agrícola ao longo do rio para o estado francês.

Ano após ano, o rio diminui, pelo menos no verão. Um estudo abrangente publicado no ano passado pelas autoridades francesas na região de Auvergne-Rhône-Alpes conclui que o fluxo de verão do Ródano caiu entre 7 e 13% nos últimos 60 anos. E poderá cair mais 20% até 2055, estima o estudo.

Mas França tem outra visão: as secas estão a devastar as comunidades e surgiram confrontos violentos devido à construção de reservatórios para os agricultores. “As tensões já existem”, garante Grosperrin. E é por isso que Paris quer ter uma palavra a dizer no futuro do Ródano.

Do Lago Genebra à central nuclear francesa

“Em Genebra, somos privilegiados. Toda a água vem até nós”, sustenta Hodgers. É por isso que sente uma responsabilidade para com os franceses a jusante: “Esta água não é nossa. A água passa, é de todos.” Porém, permitir que França influencie exatamente a quantidade de água que sai do Lago Genebra é uma linha vermelha, também para os outros cantões envolvidos nas negociações.

“Não nos queremos comprometer com certos volumes de água, porque se de repente houver muito pouca água, não queremos ser obrigados a dar muito a França enquanto não temos o suficiente para a nossa população”, ilustra Hodgers.

Depois, há a questão de como é usada essa água: a Suíça, que decidiu eliminar gradualmente a energia nuclear, está irritada com a garantia do abastecimento de água para que a França possa arrefecer a sua energia nuclear em expansão. As águas do Ródano são vitais para a central nuclear de Bugey, que fica do outro lado da fronteira com a Suíça. Muitos suspeitam que Bugey, que fornece 40% da eletricidade da região de Auvergne-Rhône-Alpes, está a impulsionar o súbito interesse do Governo francês no Ródano – as autoridades estão a planear mais dois reatores no local.

A central de Bugey é também a principal razão pela qual a França deve pedir aos suíços que deixem passar mais água pela barragem de Seujet. Embora a maior parte da água seja devolvida ao rio, os reatores necessitam de um fluxo constante e fresco – e as alterações climáticas não só estão a tornar a água do Ródano mais escassa, como também mais quente.

Da central elétrica francesa a Lyon

Em França, a situação é perigosa. A água está a desaparecer, as secas severas estão a proliferar. Os empregos das pessoas — e a sua saúde — estão ameaçados. O presidente francês, Emmanuel Macron, apresentou em 2023 um plano para conservar mais deste precioso recurso, incluindo a promessa de reduzir o uso de água em 10% até 2030. Mas não existem metas ou medidas vinculativas para setores específicos, deixando muito espaço para interpretação.

A Grande Lyon, que extrai 98% da sua água canalizada do aquífero do Ródano – a água subterrânea – planeia reduzir em 15% o seu consumo de água até 2035. Para Grosperrin, a qualidade da água é a principal preocupação: o Ródano aqueceu nas últimas décadas, tanto devido às alterações climáticas como porque as centrais nucleares descarregam água mais quente, o que aumenta o risco de poluição.

De Lyon para o resto da Europa

França não é o único vizinho suíço exasperado.

Nos últimos anos, Suíça e Itália têm discutido sobre os níveis de água no Lago Maggiore, que atravessa a sua fronteira. Em 2022, as províncias italianas atingidas pela seca pediram aos suíços que libertassem mais água. E a longo prazo, a Itália quer aumentar o nível da água do lago para que possa funcionar como um reservatório maior, algo que os suíços dizem que aumentaria o risco de inundações.

Questionado sobre se a Suíça está preocupada com estas crescentes tensões hídricas, Felix Wertli, principal negociador de Berna com França, disse: “As alterações climáticas não conhecem fronteiras e tornam necessário encontrar soluções comuns. Estamos confiantes de que o acordo ajudará os dois países a fortalecer a cooperação.”

Ler Mais