O dilema da Netflix

Será que a gigante do streaming consegue levar os filmes a sério sem afastar os realizadores?

Por Nicole LaPorte, colaboradora da Fast Company

No Verão passado, a Netflix ofereceu a Hollywood algo inesperado: um raro vislumbre do seu secreto serviço de streaming. A empresa alugou um enorme palco em LA e convidou as maiores agências de talento para irem, uma a uma, verem apresentações dos directores das muitas divisões da Netflix – de séries de improviso e comédia stand-up – à medida que expunham as ambições da empresa. Se a Netflix estava a dar este tipo de atenção às agências, é porque queria algo em troca. Qual a principal, e pouco secreta, mensagem para os guardiões das maiores estrelas do mundo? Por favor, tenham a Netflix como destino, e não como último recurso, para fazerem filmes. «Como convencemos actores e directores de sucesso a trabalharem no nosso estúdio?» – foi assim que um dos agentes no evento descreveu o subtexto da mensagem da Netflix. «Como podemos um dia chegar a Tarantino?»

Desde o lançamento do seu primeiro programa original, “House of Cards”, em 2013, a Netflix tem mais do que provado o seu valor na televisão. Séries populares como “Orange is the New Black” e “Stranger Things” ajudaram a empresa chegar aos 137 milhões de subscritores e, no ano passado, empatou com a HBO nos troféus Emmy ganhos.

Contudo, apesar do seu sucesso televisivo, a Netflix continua a precisar de filmes. «Os filmes são o que leva as pessoas a uma plataforma de streaming», explicou-me outro agente. «As séries são o que as prende.» A Netflix obteve os direitos de catálogos de filmes existentes da Disney e de outros estúdios desde que começou o seu serviço de streaming em 2007, mas a paisagem competitiva irá mudar radicalmente em 2019: a Disney e a WarnerMedia anunciaram planos para lançarem as suas próprias aplicações de vídeos por streaming antes do final do ano, e provavelmente irão guardar para si a maioria dos seus conteúdos. Entretanto, a Amazon está a acelerar a sua ambição de fazer filmes, e espera-se que a Apple entre na corrida este ano. Para que a Netflix mantenha a liderança no streaming – e prove que um dos sectores mais pesados e fechados do mundo pode sofrer uma disrupção sustentável – precisa de criar o seu próprio acervo e criar novidades frescas.

Isto explica porque tantos filmes novos da Netflix aparecem na lista “Vistos recentemente” da aplicação Netflix. Em 2018, a empresa lançou mais de 80 filmes originais, ultrapassando todos os grandes estúdios em conjunto. A sua aposta em 2019 inclui nomes sonantes como Martin Scorsese (“The Irishman”), Michael Bay (“6 Underground”) e Steven Soderbergh (“The Laundromat”). A Netflix até adquiriu recentemente uma consultoria de topo – que geriu a campanha de Melhor Filme para os filmes “La La Land” e “Moonlight”.

A incursão da Netflix nos filmes está a ser complicada, até difícil, já que vai contra as tradições e práticas de Hollywood que, desta vez, não se pode dar ao luxo de a fazer desaparecer. Têm vindo a público encontros entre os executivos de Hollywood da Netflix (que valorizam as relações com talento quando tomam decisões criativas) e os peritos em tecnologia de Silicon Valley (que favorecem os algoritmos). Depois, há o debate sobre a famosa “janela dos cinemas” de Hollywood, as semanas entre o lançamento de um filme nos cinemas e a sua disponibilidade para ser visto em casa. Respeitar esse prazo tem sido um problema irritante para uma empresa que se orgulha de fazer as coisas à sua maneira.

Em nenhuma outra altura isto foi tão evidente como na decisão de última hora da Netflix de lançar “Roma”, o filme a preto e branco, aclamado pela crítica, de Alfonso Cuarón, um realizador laureado com um Oscar, nos cinemas três semanas antes de lançar o filme na aplicação em Dezembro. Normalmente, a empresa de streaming lança um determinado número de filmes no cinema para serem nomeados nos prémios, mas lançam-nos simultaneamente no serviço, uma prática defendida fervorosamente por Ted Sarandos, Chief Content Officer da Netflix, e Reed Hastings, CEO, que muito  irrita os cineastas que acreditam na experiência do grande ecrã. “Roma” deveria ter seguido o mesmo plano – Hastings praticamente revelou-o na sua carta aos accionistas, em Outubro. Contudo, Cuarón mostrou-se relutante perante a ideia e a Netflix cedeu.

Em teoria, a disponibilidade da Net- flix para ser flexível deveria atrair mais realizadores – e beneficiar a empresa. A Netflix licitou por “Crazy Rich Asians”, por exemplo, mas os realizadores decidiram apostar na Warner Bros. para que o filme fosse visto em massa nos cinemas, uma jogada que ajudou a transformar o filme num fenómeno cultural. “Crazy Rich Asians” tornou-se um dos filmes mais rentáveis de 2018, rendendo 207 milhões de euros em todo o mundo com um orçamento de 26 milhões. Os seus lucros já ascenderam a 130 milhões de euros, ou 37% dos ganhos do terceiro trimestre de 2018 da Netflix.

A verdade é que a Netflix é ainda vista em Hollywood como um canal para vender projectos que os estúdios tradicionais não aceitam. Adquiriu “The Irishman” depois de a Paramount se ter retirado do projecto devido ao seu orçamento de, alegadamente, 110 milhões de euros (que terá sido ultrapassado). “6 Underground”, liderado por Ryan Reynolds e co-financiado e distribuído pela Netflix, também não obteve luz verde de um estúdio devido ao seu custo, segundo uma fonte.

A dúvida é se colocar “Roma” nos cinemas representa uma aberração para agradar a um realizador prestigiado ou uma razão válida. (A Netflix recusou-se a fazer comentários para este artigo.) A Netflix cedeu a Hollywood no passado. Embora tenha anteriormente louvado os seus algoritmos de recomendações como tudo o que necessário para encontrar um público para os seus programas, aumentou o seu investimento em Marketing para 1,75 mil milhões de euros em 2018, mais 56% face ao ano anterior.

Alguns dias após a declaração sobre “Roma”, directores e agentes invadiram a Netflix exigindo saber quem mais iria receber o tratamento de Cuarón. Mas a Netflix não tinha uma resposta, ou sequer uma política clara sobre a melhor forma de determinar essas coisas. (Em Dezembro, Robert De Niro revelou que o “The Irishman” iria passar nos cinemas.) «São uma empresa de streaming», afirmou um agente. «Não acredito que Reed Hastings tenha qualquer interesse» em mudar o modelo da Netflix.

Se a Netflix seguir a via das apresentações em cinemas, pode ficar refém do tipo de considerações usadas pelos estúdios para determinar como fazer um filme: será que uma determinada estrela será bem recebida na China? As vendas em mercados internacionais justificam o orçamento de um filme? Teria também de lidar com o desempenho na bilheteira, afectando as suas negociações com as maiores estrelas. (No caso de “Roma”, a Netflix evitou esse escrutínio ao arrendar os cinemas onde o filme passou, evitando ter de reportar as receitas de bilheteira. Poderá fazer isto regularmente se acabar por adquirir alguma cadeia de cinemas) «Todos têm um algoritmo», afirma Anthony Bregman, produtor do filme de “The Land of Steady Habits”, de Nicole Holofcener, e de “Private Life”, de Tamara Jenkins, os quais acabaram na Netflix depois de os estúdios terem insistido em limites criativos e financeiros que as realizadoras não aceitaram.

A liberdade da Netflix permitiu-lhe aproveitar dramas e comédias românti- cas de orçamentos médios que são ignorados pelos estúdios, os quais se concentram quase só em filmes de franchises apelativos com bases de fãs. Independentemente do que se pense da comé- dia romântica para adolescentes “The Kissing Booth”, que a Netflix afirma ser um dos seus originais de maior sucesso, provavelmente nunca veria a luz do dia noutros estúdios. E existem projectos mais pequenos e arrojados, como “22 July” de Paul Greengrass, com base nos ataques terroristas de 2011 na Noruega. «Não sei quem iria pegar naquilo», afirma um gestor. «Ainda bem que [a Netflix] o fez.»

Pode haver uma razão mais simples para a súbita amigabilidade da Netflix para com os realizadores: os filmes dão mais prestígio do que a Tv – já para não falar de validação pessoal para a marca. Como afirma uma fonte: «Ted [Sarandos] quer chegar aos Oscar. Aos Emmy já ele conseguiu. Agora quer um Oscar.»

Este artigo foi publicado na edição de Março de 2019 da Executive Digest.

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