O que esperar de 2024?: Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati

Testemunho de Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati

1. Que alterações perspectiva que possam vir a impactar o seu sector em 2024?

2. E para a sua empresa em particular, quais os maiores desafios?

Portugal investiu em tratamentos com medicamentos no último ano, exactamente o que investiu em 2012. Mais de uma década depois, com uma população mais envelhecida, novas necessidades de saúde, a recuperação da actividade assistencial pós-COVID, gastou o mesmo. Quem financiou este “saving do estado” foi a IF (absorvendo o aumento foi de 40,6% do custo unitário dos inputs entre 2016 e 2022). E espera-se, segundo o Orçamento de Estado aprovado para 2024, que não venha a investir mais. Mas para satisfazer a procura crescente de cuidados, seria imperativo que se investisse mais e alinhasse o investimento em Portugal com o que é realizado na OCDE (o nosso país está 30% abaixo da média). Portanto não será um ano fácil. À semelhança do caos que está já a acontecer no SNS. A ideologia de esquerda que tanto defende o Serviço Nacional de Saúde (público), que inviabilizou o “Sistema Nacional de Saúde” (público, social e privado; como as PPP por exemplo) “matou” o SNS (público) que tanto defendia. E não se pode “assobiar para o lado” a fingir que nada está a acontecer nas urgências hospitalares (assente em trabalho de médicos internos e horas extraordinárias) com esperas de 20 horas; ou de ter mais de um milhão de pessoas sem médicos de família a ter que ir para o Centro de Saúde às 4h da manhã para conseguir uma consulta. Dizer que este é um problema recorrente todos os anos é uma mentira parcial mas gigantesca: pois recorrente é, com este grau de gravidade não é!

Portanto, não existindo mais investimento, o financiamento da saúde vai continuar a ser feito pela indústria farmacêutica através das diversas formas criativas que o Governo encontrou para que esta devolva dinheiro ao Estado: baixas de preços anuais, “rebates”, contratos de avaliação prévia e de comparticipação (CAP), taxas e taxinhas, impostos… Estima-se que o valor médio suportado pela IF se situe em mais de 15% do valor de encargos do Estado. Ora este cenário pode inviabilizar o acesso em Portugal de novas terapêuticas e provocarem distorções que violam as regras da concorrência. Algo que já acontece em Portugal, pois um doente espera mais de dois anos que um doente alemão, para aceder a uma terapêutica inovadora.

Em relação às medidas conhecidas de 2024, existem duas específicas do sector que irão ter um impacto negativo gigantesco: a criação de 31 novas ULS, acrescidas às oito que já existem. E a maior reforma de legislação farmacêutica proposta pela Comissão Europeia.

Em relação à criação das ULS, um estudo da ERSE de 2015, relativo ao desempenho das ULS existentes de 2010 a 2013, era pouco animador. Número e tempo de cirurgias pior que as unidades não integradas; maus prazos de pagamento a fornecedores por ambas entidades quer integradas em ULS ou não; critérios de qualidade sobreponíveis ou inferiores às unidades não integradas; medicamentos inovadores disponíveis numas e noutras não… Ou seja, não apresentavam vantagens claras sobre o modelo não integrado em ULS. Em alguns critérios era até bem pior. Portanto ou muito mudou ou podemos ter mais uma falácia. Agravado pelo facto de não terem sido envolvidos os profissionais de saúde na decisão, assim como estarem a ser criados critérios de avaliação e remuneração dos profissionais baseados em decisões de corte de custos e não do melhor tratamento para o doente. Em suma, se o princípio base das ULS é positivo (ou seja, a integração vertical entre cuidados de saúde primários e hospitalares tornando-as próximas das realidades regionais), a execução prática é muito mais relevante no resultado final, o que me preocupa.

A segunda medida, relacionada com a nova Estratégia Farmacêutica Europeia e as propostas legislativas apresentadas, representa bem a epifania da Comissão Europeia. Esta nova legislação pretende eliminar a disparidade na acessibilidade, garantir a sustentabilidade e acesso, mas só promove a demagogia e o desconhecimento total da economia do medicamento. Reduz o prazo de protecção de patentes e responsabiliza a IF pela não introdução dos medicamentos inovadores em todo o espaço europeu (quando essa aprovação não depende da IF mas sim da burocracia governamental). Portanto esta estratégia é uma adaptação livre de uma frase famosa: um pequeno passo para a Europa, um salto gigantesco para o abismo!

Finalmente, começamos o ano com muitas interrogações: não sabemos o que irá acontecer com o preço dos medicamentos (deveríamos ter sabido em Novembro). Se existirá estabilidade legislativa ou se iremos dinamizar o mercado de estudos clínicos que gera apenas 85 milhões de euros quando poderia quadruplicar este valor (para além de ser um instrumento de crescimento das capacidades científicas e de promoção da transformação desta em valor económico e social). O que irá acontecer com a dívida hospitalar que apresenta prazos de pagamento de dívida vencida de mais de 500 dias. Se existirá um modelo de transição digital, de literacia em saúde ou de tutela económica do medicamento.

Em suma, temos duas certezas negativas (ULS na sua aplicação prática e a nova Legislação Europeia). E temos muitas dúvidas por responder!

3. Atendendo ao actual contexto, que expectativas a nível macroeconómico para Portugal?

2024 continuará a ser um ano de instabilidade geopolítica, de manutenção dos altos custos energéticos, de manutenção da disrupção das cadeias de abastecimento, de desaceleração económica da China e das maiores economias europeias, da continuidade da “morte da globalização” e a emergência da “blocalização”. Será também um ano de eleições e de promessas. Que espero que não sejam cumpridas como habitualmente, pois se acontecesse, a estabilidade macroeconómica que atingimos em Portugal, seria “esboroada”.

Em Portugal, as expectativas são positivas para o Governo, mas o cidadão não as vê no seu dia-a-dia. Poderá existir um pequeno excedente (abaixo de 0,2% segundo a minha opinião) ou um défice muito perto dos 0%, com a possibilidade de continuação de redução da dívida pública, o que é bastante relevante. Os juros da dívida pública vão crescer 8,6% para 7151 mil milhões de euros, ou seja metade do valor do orçamento da Saúde ainda vai para os nossos credores. Na transição energética e ambiental, somos e continuaremos a ser um óptimo exemplo no mundo. Se conseguirmos manter a taxa de desemprego a estes níveis também será bastante positivo. O nosso país apresenta um cenário positivo nos capitais próprios das empresas, capacidade de investimento e liquidez. Mas tem uma baixa qualificação dos empresários e consequente procrastinação de decisões estratégicas que não permite inovar e ganhar escala.

Como factores negativos, a redução das exportações no 2.º semestre de 2023 (por “arrefecimento das economias europeias”), que era o motor do crescimento económico. Julgo que a economia portuguesa não atinigirá o crescimento previsto no OE de 2024, mesmo com os biliões do PRR e a inflação. Para financiar o modelo social, a carga fiscal continuará elevadíssima sobre as pessoas e empresas com valores que devem chegar a 38% do PIB. Mesmo com o “malabarismo orçamental” feito de baixar a taxa de IRS nalguns escalões, mas com um aumento gigantesco dos impostos indirectos. A pobreza manter-se-á elevada (o nosso país tem cerca de 17% de pobres). A inflação vai reduzir-se, mas continuará elevada e acima dos 2% desejados. As taxas de juro ainda não vão descer e continuará a redução do poder de compra. Os salários continuarão baixos, sendo que o mínimo e médio passarão a ser quase sobreponíveis. Continuará a existir um problema de retenção de talento com um nível de emigração de jovens elevada. Não haverá estabilidade social, com greves recorrentes. O problema da habitação manter-se-á assim como da ineficiência e atraso na justiça. O insucesso escolar vai agravar-se e tem de ser uma preocupação de todos assim como a credibilidade dos políticos que desapareceu. Estimo que o turismo continue a crescer e a dinamizar a economia, mas não será suficiente para a fazer crescer. A transição digital pode ser uma oportunidade de diversificação mas tendo sempre presente os riscos agravados de cibersegurança.

Em conclusão, 2024 será um ano de incerteza, pior para as PME que mais sofrem com a redução do consumo ou das encomendas para exportação. A necessidade de aumentar os ganhos de produtividade alavancados em ganhos de dimensão e escala será possível fruto da resiliência das nossas empresas e dos cidadãos. Ao Estado pede-se que regule e que “não atrapalhe mais”!

Testemunho publicado na revista Executive Digest nº 214 de Janeiro de 2024

Ler Mais