«Achamos mesmo que a crise da COVID-19 acelerou a transformação digital?»: Opinião de José Gonçalves, Presidente da Accenture Portugal

E embora pareça uma opinião quase consensual, esta é uma convicção com a qual não estou de concordo. Acredito que estamos a confundir a adopção de ferramentas tecnológicas com a efectiva transformação digital das organizações.

Não me interpretem mal: é óbvio que a necessidade de salvaguardar a segurança dos colaboradores, colocando- os a trabalhar a partir de casa teve imensas vantagens. Por um lado, demonstrou que é possível fazer muitas das nossas actividades remotamente e onde quer que estejamos. Por outro lado, acelerou o desenvolvimento de competências digitais em muitas áreas da nossa sociedade que se viram obrigadas a utilizar ferramentas e serviços disponíveis na internet, que em muitos casos lhes eram desconhecidos. São mudanças importantes? Sem dúvida. Mas são também apenas a ponta do iceberg no que se se refere à efectiva transformação digital.

A transformação digital não se mede por níveis de adopção de tecnologia, mas sim, pela criação de valor, com impacto substancial nos resultados e mesmo nos balanços das organizações. Deve ter como objectivo reduzir custos, incluindo a optimização do capital empregue e retorno dos investimentos (transform the core), o aumento das receitas (grow the core) e a criação de novos negócios rentáveis à escala global (scale the new).

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  • Transform the core e a redução de custos

A redução de custos implica a transformação da experiência de clientes e dos processos operacionais.

Para tal, é fundamental que os canais digitais estejam disponíveis, mas sobretudo que os clientes os utilizem efectivamente, realizando o maior número possível de operações em modo self-service. Para além da comodidade para os clientes, elimina-se um grande volume de trabalho interno às organizações. Como é evidente, a user experience dos canais digitais é fundamental para sermos bem-sucedidos: não basta disponibilizar serviços, ao contrário das métricas de sucesso que a maior parte das organizações adoptam, é necessário que os clientes os usem de forma satisfatória.

Todos os serviços que não possam ser prestados em self-service, deverão utilizar uma primeira linha de triagem e de tratamento automático com recurso a agentes virtuais e que implicam capacidades de inteligência artificial, actualmente mais do que comprovadas na resolução de processos relativamente simples.

Quando a interacção com os clientes requer processamento interno, pela sua maior complexidade, o mesmo deve ser automatizado o mais possível através de RPA (Robotic Process Automation). As pessoas devem focar-se em actividades criativas e de maior valor, aumentando drasticamente a sua produtividade e engagement.

Todas as operações devem ser desmaterializadas potenciando capacidades de gestão digital de documentos, que implica a revisão de processos, a simplificação de procedimentos e a redução drástica da burocracia.

As operações devem ser inteligentes, ou seja, devemos realizar apenas as que são necessárias, optimizando a relação custo, risco e qualidade do serviço. Tal implica a utilização intensiva de analítica preditiva, com recolha de dados através de sensorização e eventual telecomando quando estão envolvidos activos físicos, potenciando soluções de internet of things.

Quando as operações requerem intervenção no terreno, tudo deve ser gerido em tempo real com base em soluções integradas de mobilidade, aumentando as capacidades e eficácia das pessoas na execução das suas tarefas através de soluções de realidade aumentada ou mesmo virtual.

A analítica preditiva é também fundamental para entender os comportamentos dos clientes e eventuais situações de insatisfação, potenciando a actuação pro-activa junto dos mesmos com soluções que maximizem a sua retenção e fidelização.

  • Grow the core e o aumento de receitas

O aumento de receitas implica posicionar eficazmente uma oferta digital e transformar a relação e a experiência dos clientes.

Comprar online através de soluções de e-commerce deve ser uma experiência muito mais simples e satisfatória do que quando se recorre aos canais físicos. Mas, antes disso, é necessário que os produtos & serviços sejam conhecidos e atractivos para os clientes.

Para tal, importa criar uma oferta concebida de base sob o paradigma digital. Idealmente, produtos & serviços que possam ser disponibilizados directamente através da internet, com uma experiência de excelência garantida, que não faça o cliente desistir a meio do processo de compra (quantas vezes isto já nos aconteceu?). A disponibilização de conteúdos ou de informação em real time com alto valor para os clientes são exemplos paradigmáticos.

No que se refere a produtos físicos, que requerem uma cadeia logística de entrega, o objectivo é ter uma experiência tão simples e fácil que quase que pareça que o que comprámos nos é entregue directamente através do dispositivo móvel. Gosto de usar como exemplo a Uber Eats: é mais fácil escolher o queremos do que quando estamos sentados no restaurante à espera do empregado e do menu físico. Temos muito melhor informação sobre o tempo que a nossa refeição demora a ser confeccionada e somos avisados pro-activamente quando há imprevistos, ao contrário do que acontece no restaurante. E, muito importante, pois ainda é um pain point típico do e-commerce, quando chega o momento de entrega, o agente está realmente empenhado em conseguir satisfazer o pedido ao cliente com sucesso, mesmo que para isso tenha de lhe telefonar. É tão fácil que é como se a comida nos chegasse à mesa directamente, através do dispositivo móvel, à hora prevista. Uma experiência digital de excelência.

No entanto, de pouco serve termos uma oferta digital adequada sem que o marketing e as campanhas digitais coloquem os devidos recursos na sua promoção e relevância online. Existem imensas empresas com ofertas digitais interessantes mas que continuam a investir grande parte do orçamento de marketing em temas institucionais ou de forma tradicional. O alinhamento entre o investimento de marketing e objectivos de vendas digitais nunca foi tão importante. Um produto de excelência, que não é visível no ciberespaço, nunca será um sucesso.

Finalmente, e mais uma vez, a inteligência e pro-actividade potenciando a analítica preditiva. Entender as reais necessidades dos clientes e ser capaz de lhes oferecer o produto ou serviço certo, no momento adequado, através do canal mais conveniente, com uma experiência de excelência, aumenta de forma decisiva o sucesso das vendas. Ao mesmo tempo que evitará situações embaraçosas, como procurar promover uma determinada oferta no momento de reclamação do cliente, em que o foco deve ser a resolução adequada do seu problema e a sua retenção.

  • Scale the new e a criação de novos negócios

Vivemos num mundo digital. Ser líder num nicho de mercado à escala global é muito mais relevante do que ser um national champion na nossa pequena economia.

O futuro de Portugal e das suas empresas passa pela exportação. E com o digital, as fronteiras e distâncias físicas são cada vez menos relevantes, sendo possível chegar a clientes em todas as partes do globo – o mercado onde actuamos passa a ser o mundo.

A comprová-lo, temos as empresas que começaram como startups e rapidamente atingiram um valor de mercado superior a mil milhões de dólares. A Outsystems disponibiliza uma plataforma tecnológica de desenvolvimento rápido de software (low code) através da cloud, para clientes em mais 50 países. A Farfetch é uma plataforma online de comercialização de produtos de moda de marcas de luxo, entregando os seus artigos em cerca de 190 países. Ambas são líderes globais no seu nicho de mercado.

É necessário que haja mais negócios criados de base a pensar no mercado à escala global, potenciando o paradigma digital. Neste âmbito, é fundamental o papel das empresas ditas tradicionais. A maior parte dos nossos national champions estão focados em transformar e crescer o seu negócio core. É necessário mais investimento e aposta em criar novos negócios digitais à escala global. Não podemos ficar dependentes apenas de startups que conseguem ter sucesso e escalar. As grandes empresas portuguesas têm claramente um papel fundamental a desempenhar na criação destes novos negócios, potenciando o seu talento, capacidade de investimento e ecossistema de parceiros.

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A tecnologia nunca esteve tão barata e a redução dos seus custos é exponencial. A capacidade de combinar tecnologias digitais através da cloud nunca foi tão fácil. A consolidação de novos métodos de trabalho, incluindo o design thinking e o agile e a abertura a ecossistemas de parceiros, potenciam a inovação.

A transformação digital apresenta-se como uma oportunidade única para a criação de valor.

Muitos líderes me perguntam como devem medir o sucesso da transformação digital. Intensidade de utilização de novas tecnologias? Número de iniciativas digitais? Serviços disponíveis na internet para os clientes? Número de robots implementados? A minha resposta é muito simples – bastam três indicadores: redução de custos, aumento de vendas e cash flow operacional gerado com novos negócios através do digital.

Não há dúvidas que a pandemia da COVID-19 acelerou o trabalho em mobilidade e o desenvolvimento de competências digitais. Mas ainda temos um grande caminho pela frente para transformar e crescer o core business das nossas empresas assim como escalar novos negócios numa perspectiva global, potenciando uma oportunidade sem precedentes no passado recente para o desenvolvimento económico do nosso País.

Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 172 de Julho de 2020

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