A democracia do “Apenas eu”: Opinião de Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati

Queremos que os direitos individuais e colectivos sejam respeitados, mas “os meus têm mais valor que os dos outros e os colectivos”. Estejamos a falar de cidadãos, grupos organizados (ou não) ou de regiões e países. Ainda bem que não sou político nestes tempos. Na Europa, todos querem que o orçamento da UE seja aprovado de forma a implementar os mecanismos de apoio mas a Hungria e a Polónia bloquearam a aprovação do orçamento plurianual, por não concordarem com o mecanismo que condiciona o acesso aos fundos comunitários, ao respeito dos princípios fundamentais de um Estado de direito. Ou seja a “democracia do EU” aplicada aos Estados. Mas os valores fundamentais e o funcionamento da UE assentam na democracia representativa e no estado de direito. O que fazem lá a Polónia e a Hungria se não se identificam com estes valores? Apenas querem beneficiar do mercado aberto e dos benefícios de estarem num mercado comum (ou seja só me interessa o “Apenas EU”).

Em Portugal, uns concordam com as restrições e confinamento obrigatório estabelecido. Outros entendem que devia ser apenas a partir das 15h de sábado para permitir que os restaurantes funcionassem à hora de almoço. Os donos dos restaurantes, não querem qualquer confinamento, até porque alguns investiram bastante na adaptação dos seus espaços para ficarem seguros. O mesmo se passa com os agentes da cultura, pois o negócio desapareceu de um dia para o outro, apesar dos investimentos feitos. Ou seja “Apenas EU” para os empresários e para o Governo, que apesar de não ter nenhuma evidência de que os restaurantes sejam locais de contágio preferenciais tem que mostrar que está a fazer alguma coisa.

Os políticos e o Parlamento querem um Orçamento que pelos vistos não querem aprovar. Sendo que um dos partidos da geringonça se distanciou do OE pensando provavelmente nas consequências políticas de uma “colagem” deste tipo num ano que vai ser duro. O outro partido absteve-se, viabilizando o Orçamento e conquistando uma imagem de estabilidade em ano difícil mas não aprovando o OE pelos mesmos motivos do anterior. Ou seja, os interesses do “EU”, sendo o “EU” aqui um grupo de indíviduos organizados em partidos políticos.

Por outro lado, o principal partido da oposição, que sempre apoiou o Governo nos três anteriores Orçamentos em relação ao Novo Banco e sempre disse que os contratos são para cumprir; deixou agora de apoiar. Porque provavelmente tem benefícios eleitorais, ou seja, o “EU” ganha, mesmo sendo inconsistente.

O mesmo parlamento quer um Estado de Emergência mas que afinal não quer aprovar. No entanto nunca criou uma lei de saúde pública que preveniria a utilização da figura jurídica da bazuca do “Estado de Emergência”. Mas considera que será melhor para a sua imagem, é um “claim” político importante que permite utilizar todas as “armas jurídicas limitativas da liberdade individual possíveis” pelos partidos políticos para poderem afirmar que tudo estão a fazer para travar a pandemia. Para além da sua preocupação genuína com a defesa da saúde pública e não ter que apresentar números elevados de contágios e mortos. Ou seja a minha imagem, o “EU” como centro da motivação.

O ministro da Economia quer recuperar a Economia mas o Banco de Portugal afirma que esta “recupera automaticamente com a vacina da COVID”. Ou seja o protagonismo (e a genuína vontade do Sr. Ministro em ajudar as empresas e os cidadãos) também no centro das decisões.

O parlamento aprovou uma lei de bases da Saúde que reafirmou o SNS mas esqueceu-se que agora precisamos de um SNS que integre Público, Privado, Social e Associativo, com o qual tem um preconceito ideológico. Ou seja, mais uma vez a ideologia (a minha ideologia, o “EU”) a condicionar as decisões e provavelmente a causar muitos danos.

Os sindicatos começam a manifestar-se com greves e reivindicações por aumentos salariais numa Economia que irá cair -7% e uma taxa de desemprego que ficará acima de 10%. Apesar da genuína preocupação com os trabalhadores, deveria existir preocupação com as empresas que criam emprego para não existir desemprego. Ou seja o “EU”, com toda a legitimidade, no centro das preocupações, o que é normal no meio sindical. Os Bancos referem que estão bem, mas ainda não impactaram os custos dos incumprimentos que advirão das moratórias estabelecidas em 2021. Porque estão defendidos pelas garantias públicas em muitos casos, portanto o problema não é meu (do banco), o “EU” está defendido!

Os negacionistas negam a utilização da vacina porque entendem que existem riscos superiores na vacinação do que na sua não utilização contra a opinião da maioria que entendem que estes serão disseminadores do vírus. Os doentes que não estão infectados querem ser tratados mas têm medo de ir aos centros de saúde e hospitais, pelo que querem espaços separados ou então preferem não ser tratados (com as consequências negativas a médio prazo que isso trará). Ou seja, o “EU” e aquilo em que acredito a colocar em risco toda uma sociedade.

Os doentes que estão em confinamento preventivo não sabem se ficam em casa 10 ou 14 dias e se precisam de fazer um segundo teste, contra a opinião dos outros que não querem ser infectados. Os cidadãos não entendem se têm de usar máscara na rua ou não, pelo que os que usam começam a insultar publicamente na rua, os que não usam. Porque as regras são pouco claras, porque queremos simpatizar com todos os grupos, com todas as opiniões. Isso mesmo aconteceu com a aplicação “StayAway COVID”. Queremos ser consensuais para não limitar ainda mais a vida às pessoas, acreditando no bom senso das mesmas. Ou seja, não quero fazer o papel do “mau da fita”.

As empresas que já tinham criado regras e medidas de teletrabalho e não queriam o teletrabalho obrigatório pois querem continuar a laborar, mas o Governo decidiu estabelecer a obrigatoriedade desta regra. Apesar de mais uma vez não existir nenhuma evidência de que as empresas sejam locais de contágio preferenciais, nem há conhecimento de nenhum surto originado numa empresa que possa fazer o seu trabalho de forma remota. Ou seja, o “EU” a mostrar que tudo está a fazer para travar a pandemia, mesmo com medidas desnecessárias e que podem ainda prejudicar mais a economia do que já está.

Os médicos de saúde pública dizem que apesar de não haver casos graves de surtos em escolas, estas deveriam estar fechadas; mas o Governo entende que não pois isso prejudicaria o ensino (e acho que têm razão) mas também obrigaria os pais a ficarem em casa (e não irem trabalhar) para as crianças até 12 anos, prejudicando a economia (apesar de ter criado o teletrabalho obrigatório) e tendo de pagar ainda mais subsídios. Ou seja, o “EU” do Governo, e ainda bem diga-se, a tentar defender os custos do estado e a execução orçamental.

O plano de vacinação que deveria estar pronto em Abril/2020, não está pronto e apenas foi iniciado há algumas semanas, sabendo nós que o plano de compras da vacina não foi feito pelo Governo Português mas pela UE. Mas tudo está bem, o “EU” já preparou um plano (que apesar de ter sido logo questionado pelas altas figuras do estado, mesmo antes de ser apresentado formalmente) e tudo vai correr bem…

Que confusão… Tudo porque não temos uma liderança forte, um rumo bem definido do caminho a percorrer, a comunicação dos objectivos ser feito repetidamente e de forma KISS (“Keep Simple and Stupid”). Organizem-se por favor!

Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 177 de Dezembro de 2020

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