De boas intenções está o inferno cheio

Por Manuel Falcão – sfmedia.org

 

O Governo gosta naturalmente de se apresentar como um bom seguidor das melhores práticas de outros países europeus. Mas quando começamos a ver as coisas em mais detalhe percebe-se logo que a coisa não é bem como se anuncia.Peguemos assim em dois exemplos da actuação de governos – um sobre a evolução dos transportes e outro sobre mídia. No fim do dia tudo se resume a isto: somos todos iguais mas uns funcionam melhor que os outros.

OS COMBOIOS  – Tenho uma grande convergência de pontos de vista com o Ministro Pedro Nuno dos Santos sobre a importância do transporte ferroviário e fico satisfeito com o lançamento do debate sobre o Plano Ferroviário Nacional. Reparem bem que é um debate, com algumas intenções anunciadas, mas sem caminho traçado nem investimento anunciado. O Ministro diz que quer fazer uma proposta mais detalhada no final do primeiro trimestre de 2022 e já se percebeu que, entre os especialistas, há visões distintas sobre o que fazer em termos das ligações internas entre cidades e nas ligações com Espanha. É normal, é o início de um debate que já vem aliás desde 1998 e passou por vários Governos, de Cavaco Silva ao actual, passando pelo de José Sócrates. São 33 anos de planos e debates para anunciar um novo debate. A realidade é esta: o nosso sistema de ligações ferroviárias é sensivelmente o que vem desde inícios do século passado só que já bastante diminuído em relação ao original. Em Portugal, desde 1974 foi encerrada cerca de 40% da ferrovia e só entre 1988 e a actualidade foram encerrados 1664 quilómetros de linhas férreas. O mapa dos caminhos-de-ferro portugueses tem hoje o mesmo número de quilómetros (2546) que tinha em 1893. Quanto a ligações à Europa, a começar pelos nossos vizinhos espanhóis, nada se sabe das prioridades e intenções. De Lisboa a Madrid são 630 kms por estrada. O Ministro Pedro Nuno dos Santos disse esta semana que  queria acabar com viagens de avião até distâncias de 600 kms. Vamos ver o que acontece. Mas, já que o debate sobre o tão falado Plano Ferroviário nacional foi lançado esta semana, deixem-me aqui falar de um outro plano ferroviário recente, de outro país – a Áustria, que tem cerca de 8,9 milhões de habitantes, dos quais 1,6 milhões estão na área metropolitana de Viena. O seu Governo anunciou há poucas semanas um ambicioso projecto ferroviário que inclui a criação do Nightjet, um comboio nocturno como o nome indica. Terás carruagens normais  e carruagens cama e com couchettes (onde os assentos se transformam em camas). O objectivo  é criar uma ligação ferroviária a partir de Viena que, durante a noite, atravesse a Europa, primeiro até à Alemanha e a Itália e depois com ligações a mais de 20 cidades de outros países. Esta iniciativa, apresentada como uma alternativa mais ambiental que os aviões, faz parte de um plano austríaco de renovação da ferrovia orçamentado em 500 milhões de euros. A primeira viagem do Nightjet está prevista para o início de 2022. Quando ainda estiver a ser debatido o tal plano agora de novo prometido para Portugal.

O ESTADO E OS MEDIA – Um estudo recente publicado no Reino Unido indica que em 2020 o Governo britânico comprou 200 milhões de euros em espaço publicitário tornando-se no maior anunciante do país num ano em que o investimento publicitário no Reino Unido caíu cerca de 19% devido à pandemia. O reforço do investimento teve a ver coim campanhas de saúde pública mas também como uma forma de apoio aos mídia. Se fizermos a proporção entre a população do Reino Unido e a população de Portugal, para se alcançar um investimento per capita semelhante o Governo português devia ter alocado cerca de 30 milhões de euros à publicidade. O que aconteceu foi que o Governo atribuíu 15 milhões de euros de publicidade de várias campanhas de organismos públicos, uma decisão anunciada em Abril e que demorou meses e meses a ser operacionalizada, não se sabendo ainda, aliás, quanto foi de facto utilizado dessa verba e como. Entretanto, em Espanha o Primeiro Ministro anunciou o lançamento de um plano de investimento no audiovisual no valor de 1.6 mil milhões de euros  que se destina a fomentar a produção audiovisual local e a atrair produtores internacionais a irem filmar em Espanha. Do total dos incentivos 1.3 mil milhões de euros serão concretizados através de incentivos fiscais e acesso a linhas de crédito especiais garantidas pelo Instituto de Credito Oficial, ICO, o equivalente à CGD. Estas facilidades fiscais e de crédito estarão disponíveis para empresas de produção espanholas ou estrangeiras. Investir numa das indústrias que está a mudar o mundo continua fora da esfera das preocupações do governo português. Ou seja, de boas intenções anda o inferno cheio. Este continua a ser o reino das promessas não cumpridas.