O risco nos tempos de pandemia
Comparativamente à crise de 2008, a situação actual não foi originada por excesso de confiança ou por desequilíbrios nos mercados financeiros ou imobiliário – sem com isto dizer que não existissem desafios próprios, nomeadamente os associados ao ambiente de taxas de juro muito baixas. É uma crise de saúde pública, exógena ao sistema financeiro, mas de impacto abrupto e transversal, com paralisação quase imediata da actividade económica.
Por outro lado, em parte devido à transversalidade da crise e em parte devido aos ensinamentos da crise soberana anterior, subsiste a expectativa de que, com o forte e rápido contributo de políticas públicas – orçamental, monetária e regulatória – e de iniciativas privadas, nomeadamente dirigidas ao financiamento da economia, o movimento de recuperação económica possa também ser rápido e intenso. Persiste, todavia, grande incerteza quanto ao regresso a uma situação e condição financeira semelhantes às existentes no período pré-crise e também quanto à configuração dos sectores económicos e negócios que conseguirão subsistir não obstante a paragem da actividade por um período prolongado e consequente falta de arrecadação de receita. A recuperação que iremos observar poderá ser considerada mais micro do que macro, pois será função do sector económico em causa e do modo como foi afectado pelo novo contexto, da condição financeira existente da empresa e da qualidade de gestão, e da capacidade de aceder e usufruir convenientemente do suporte externo disponível.
A crise financeira e soberana anterior conduziu a um reforço muito significativo dos requisitos prudenciais exigidos aos bancos, em termos de capital, liquidez e nos próprios procedimentos internos de controlo e gestão do risco. Assim, face a 2008, hoje o sistema bancário português encontra-se mais robusto e, nesse sentido, melhor equipado para enfrentar crises. Os rácios de capital são muito superiores (quase 4x), o financiamento encontra-se muito menos dependente dos mercados por grosso (aliás, o rácio de transformação de depósitos em crédito é inferior a 100% em Portugal), a capacidade de resposta e o conhecimento hoje adquirido de como operar em tempos de stress financeiro e de liquidez constituem hoje uma valia. A arquitectura da União Bancária implementada em 2014, com supervisores e regras comuns para os principais bancos de cada Estado-membro, com testes de stress e diversos exercícios de simulação para aferir robustez de balanço e capacidade de resposta em tempos de crise, é também um resultado da crise anterior e visou precisamente adicionar robustez e sustentabilidade ao sistema bancário.
Com isto não se pretende assegurar que o sistema bancário está imune, pois não é independente da condição económica e financeira dos principais mercados onde opera, mas, pelo menos, é inegável que actualmente apresenta uma maior capacidade para acomodar impactos adversos do que no passado.
As medidas que os bancos, em particular o Millennium bcp, têm tomado, podem ser classificadas em três grandes grupos:
1 • Assegurar a continuidade imediata dos serviços e produtos bancários, através da prestação em segurança, por meios físicos e remotos, dos serviços, rapidamente adequando os processos operativos e respectivos recursos ao nível do front office e das necessárias actividades de suporte (rotação de equipas, rapidez de desinfecção de lugares físicos, relocalização de actividades e de equipas de suporte…). De facto, os serviços bancários foram considerados essenciais e estiveram disponíveis sem interrupções ao longo do período mais intenso do confinamento social, quer na sua dimensão digital quer na abertura ao público dos balcões sob determinadas condições de segurança;
2 • Contribuir para o financiamento da economia e disponibilidade de liquidez, nestes casos, em estreita ligação com as medidas de política monetária de natureza expansionista e com as políticas extraordinárias de apoio público às empresas, criando as condições para que os clientes pudessem, o mais rapidamente possível, aceder a esses mecanismo de apoio, entre os quais as linhas de crédito protocolado e a possibilidade de prorrogação do pagamento das prestações mensais dos empréstimos vivos, nas moratórias pública e privada, esta última conforme desenhada pela Associação Portuguesa de Bancos no estrito cumprimento da regulação bancária;
3 • Defender condições de sustentabilidade financeira a prazo de modo a poder continuar a contribuir e a robustecer o clima de confiança que prevaleceu ao longo da crise no sistema bancário nacional. Significa que a excepcionalidade do contexto não deve ser confundida com menor rigor na assunção de risco e que se irão continuar a desenvolver os serviços remotos que ganharam em relevância e utilidade no contexto actual, mantendo padrões elevados no devido escrutínio das operações, nas suas diversas dimensões, de risco de crédito, de combate ao branqueamento e ao financiamento do terrorismo, autenticação das operações de pagamento, etc.
Os resultados falam por si: contexto de liquidez tranquilo, com uma certa normalidade no acesso e utilização dos serviços bancários, redução expectável dos serviços de pagamentos tradicionais realizados nos balcões, mas aumento do recurso aos canais digitais. Refira-se, porém, que mesmo em momentos de maior restrição na mobilidade social, continuou a existir procura pelos serviços prestados nos balcões, não obstante a possibilidade conferida para os mesmos poderem ser executados através de máquinas automáticas ou remotamente e comodamente via site ou telemóvel. Ou seja, há um caminho, mas não ruptura.
As crises constituem sempre um momento de revisitação: reduzir as vulnerabilidades e aproveitar as oportunidades. No caso dos serviços bancários, o actual contexto não obrigou a uma transformação radical, mas está a confirmar, e confere confiança, às mudanças baseadas na capacidade tecnológica que já estavam em curso.
A crise testou a capacidade instalada e evidenciou a versatilidade dos bancos em Portugal para, em segurança, continuar a servir os seus clientes. Constituiu uma montra da acessibilidade e potencialidade dos serviços bancários através de canais remotos, que demonstra a sua comodidade, fiabilidade e segurança. Constituiu também evidência da capacidade de execução, em qualidade, com recurso a novas arquitecturas tecnológicas e de processos, alargando a fronteira de possibilidades de organização que se encontra ao dispor dos bancos. Uma experiência em larga escala, bem- -sucedida, que dificilmente seria realizável senão pelo imperativo da crise.
Mas há características do serviço bancário que, provavelmente, se irão manter. A atenção à qualidade de balanço é fundamental, com grande exigência a recair sobre os profissionais bancários para diligentemente procederem à adequada avaliação e acompanhamento da condição financeira dos clientes, de modo a proporcionar o eficaz suporte à economia, mas sem comprometer a sustentabilidade futura. Mas só por si, perante a dimensão do impacto na economia, pode não ser suficiente. O aumento do risco da actividade económica complica o financiamento da economia e fragiliza o balanço do sistema bancário donde a importância de políticas públicas, através de garantias aos empréstimos protocolados e às moratórias ou através de esquemas de capitalização das empresas, que permitam reduzir o risco intrínseco da actividade de crédito e facilitar a retoma da actividade das empresas.
São medidas que estão a ser praticadas em todos os Estados-membros, sob coordenação da Comissão Europeia, mas de dimensão variável, em parte função da folga orçamental que cada Estado- membro dispõe. É assim também importante que o suporte de emergência actual não constitua a prazo motivo para um desequilíbrio competitivo entre Estados-membros, em prejuízo dos países que actualmente enfrentam uma maior restritividade orçamental.
A actual crise tem mobilizado valias, esforços e suporte de todos os agentes económicos, que face a um desafio sem precedentes também estão a implementar medidas de natureza excepcional. O sistema bancário adaptou os seus modelos de negócio e de serviço à economia em conformidade e em colaboração com as autoridades, mas sem perder o foco na sustentabilidade de modo a preservar o activo essencial da confiança.