Botox, drones e bombas de 250 quilos no Donbass que Trump quer entregar ‘de mão beijada’ a Putin

A região de Donetsk vive hoje uma realidade paradoxal, marcada por momentos de aparente normalidade, como consultas estéticas, e por violentos ataques russos que se repetem diariamente.

Pedro Gonçalves
Dezembro 10, 2025
18:03

A região de Donetsk vive hoje uma realidade paradoxal, marcada por momentos de aparente normalidade, como consultas estéticas, e por violentos ataques russos que se repetem diariamente. A médica Irina Malykhina, de 32 anos, que regressou a Kramatorsk no ano passado para reabrir a sua clínica de cosmética, conta que recebe semanalmente clientes — muitos deles militares, entre 60% e 70% — que lhe pedem injeções de botox, sublinhando que “as ucranianas são muito vaidosas, mesmo nas situações mais difíceis”, e que ninguém quer “ter rugas” em plena guerra.

Segundo descreve o El Mundo, esta aparente serenidade contrasta com a escalada de violência que domina a região. Em Sloviansk, o estrondo das bombas KAB de 250 quilos tornou-se quotidiano e as explosões fazem tremer edifícios inteiros. Na noite de 3 de dezembro, um dos ataques russos deixou quase uma dezena de feridos e destruiu habitações numa avenida próxima da estação ferroviária. Tatiana, de 44 anos, recorda que a deflagração a projetou para o chão quando via televisão com o filho, e que agora tenta improvisar uma cobertura para as janelas destruídas pela onda expansiva.

A intensificação dos ataques, que incluem drones e munições guiadas, transformou Sloviansk, Kramatorsk e localidades vizinhas como Druzhkivka, Sviatogirsk ou Duzhkivka nos principais alvos da artilharia russa. As autoridades ucranianas contabilizam 44 mil projéteis deste tipo lançados por Moscovo desde o início do ano. O avanço russo tem sido lento mas constante, permitindo ampliar a chamada “zona da morte” dominada por drones, onde ainda vivem cerca de 200 mil pessoas, enquanto análises do portal Deep State indicam que o exército de Moscovo ocupou mais de 500 quilómetros quadrados apenas em novembro.

Neste ambiente de violência crescente, os hospitais tornaram-se refúgios precários. No Centro Hospitalar Otmo, em Kramatorsk, o médico Oleksander Heiko explica que as explosões são audíveis a 15 quilómetros e que muitos doentes — alguns com cancro, outros com problemas cardíacos ou renais — lutam não só contra as suas doenças, mas também contra a devastação provocada pela ofensiva russa. O stress permanente está a deixar marcas visíveis: jovens soldados e civis têm sofrido enfartes e AVC, e vários médicos do próprio hospital morreram de problemas cardíacos relacionados com a pressão psicológica constante.

Entre a população civil e os militares que ainda defendem Donetsk, cresce o pessimismo quanto ao desfecho da guerra. Figuras influentes, como o ativista Serhii Sternenko, avisam que o país se aproxima de “um desastre de magnitude estratégica”, enquanto o especialista em drones Ihor Lutsenko admite que muitas brigadas ucranianas já quase não têm infantaria operacional. O analista militar Taras Chmut fala numa “dinâmica de perda de posições” impossível de contrariar, e o austríaco Tom Cooper considera que “a Ucrânia está a perder a guerra”, afirmando que em alguns sectores Moscovo dispõe de oito soldados por cada ucraniano.

Nas frentes mais expostas, o desespero convive com a resiliência. O empreendedor Ilya Leaf, conhecido como “Izia”, transformou o seu hobby de aeromodelismo numa unidade de drones de combate e trabalha com a sua equipa num pequeno ateliê onde constrói aparelhos capazes de transportar cargas de 20 quilos a longas distâncias. Um deles, apelidado “Quasimodo”, é apresentado como totalmente automatizado: “Carrega, vai, lança e volta”, explica. Apesar do perigo permanente, insiste que “lutar pela nossa terra também conta na guerra”, numa tentativa de manter vivo o ânimo da sua unidade.

A pressão militar tem provocado um êxodo crescente. A população de Donetsk passou de 460 mil habitantes em 2024 para apenas 200 mil em outubro deste ano, segundo a rádio local Bezkoshtovne. Nas ruas destruídas de Druzhkivka, onde drones russos transformaram carros em carcaças fumegantes e bombas KAB arrasaram edifícios inteiros, a empresária Viktoria Borotkina revela que já pensa abandonar a região e mudar-se para o oeste do país. Em algumas paredes surgem mensagens em inglês, incluindo uma frase escrita a tinta — “Tomahawk é o melhor negociador com a Rússia” — numa referência aos mísseis norte-americanos que o presidente Donald Trump insiste em não enviar para Kiev.

Nas imediações de Pavlograd, às portas do Donbass, o veterano Anatoli Tokarev, conhecido como “Grandpa”, partilha o mesmo receio e rejeita frontalmente a hipótese de entregar o Donbass como parte de um eventual plano de paz apoiado por Trump. “Estamos marcados. Matar-nos-ão se assinarmos a paz ou se continuarmos a lutar. Por isso, prefiro lutar até ao fim”, afirma. A seu lado, companheiros como Igor “Archibaldt” ecoam a mesma convicção: mesmo que Moscovo arrase totalmente a região, acreditam que a resistência acabará por desgastar o exército russo ao ponto de travar o avanço, custe o que custar.

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