A Netflix falhou o seu objectivo de crescimento. É o caos no streaming
Nos últimos oito anos, a Netflix parecia ter tudo definido. «Mais programas, mais visualizações; mais visualizações, mais subscritores; mais subscritores, mais receitas; mais receitas, mais conteúdos», afirmou o director de conteúdo Ted Sarandos à revista New York, há menos de 18 meses.
Então, o que é que acontece quando esse plano tão perfeito começa a descarrilar, de repente?
A Netflix ficou aquém das suas metas de crescimento de subscritores pelo segundo trimestre consecutivo, e está a colocar a culpa no aumento de preços nos EUA desde o início do ano, bem como em «movimentos muito pequenos nos cancelamentos» que tiveram um «impacto significativo nos ganhos líquidos pagos», como a empresa declarou na sua carta trimestral aos accionistas.
Numa altura em que são apresentados os lançamentos da Apple TV+ e do Disney+ – e sabendo-se desde já que este último ultrapassou todas as expectativas de subscritores nos primeiros dias – e, teoricamente, a pouco tempo da HBO Max, Peacock e Quibi entrarem formalmente na guerra do streaming. No entanto, aqui, hoje, com muito menos concorrência, os «movimentos muito pequenos nos cancelamentos» impediram a Netflix de encontrar 220 mil novos subscritores para atingir o seu objectivo.
Nos EUA, a Netflix adicionou apenas 517 mil novos subscritores no trimestre, em comparação com a sua meta de 800 mil. Apesar de a terceira temporada de Stranger Things ter sido «a temporada mais assistida até hoje, com 64 milhões de membros nas primeiras quatro semanas»; apesar de o seu filme original, “Tall Girl”, ter atraído 41 milhões de espectadores; apesar da estreia estrondosa da primeira série de Ryan Murphy, um dos seus nomes mais aclamados (curiosamente, o The Politician, de Murphy, não foi mencionado nem na carta aos accionistas nem no vídeo de resultados), esses sucessos inacreditáveis e lançamentos chamativos não fizeram com que algumas centenas de milhares de pessoas novas se inscrevessem e permanecessem como clientes pagantes até 30 de Setembro.
A NETFLIX QUER SER A AMAZON
Embora a liderança da empresa pareça imperturbável no seu vídeo de resultados, ignorando todas as notícias e tentando desviar o tema da métrica – ou seja, o crescimento de subscritores – que há anos é considerada o único número importante, a Netflix revelou um tom mais comedido na sua carta aos accionistas. De facto, com a concorrência à espreita, a Netflix esforçou-se para explicar a base dos seus negócios:
«Esforçamo-nos para programar a Netflix com a melhor variedade de conteúdo de alta qualidade em vários géneros (séries com guião, filmes, documentários, especiais de comédia, programas sem guião, crianças e família, anime, etc.). A nossa abordagem ambiciosa reflecte o objectivo de satisfazer os desejos de entretenimento dos nossos mais de 158 milhões de membros e atrair o maior número possível de centenas de milhões de não-membros. Para isso, precisamos de uma grande variedade de conteúdo de qualidade, porque as pessoas têm gostos muito diversos. Se pensarmos nos nossos próprios hábitos, reconhecemos que o que desejamos assistir na sexta-feira à noite pode diferir do que desejamos assistir na terça-feira após um longo dia de trabalho ou do que desejamos assistir com a família no sábado pela manhã ou do que queremos assistir com amigos no domingo à tarde. Agora, multipliquem isso por milhares de milhões de pessoas no planeta e todos os outros factores que afectam as preferências de visualização, e terão uma noção da amplitude da programação necessária para ter o sucesso que desejamos.»
Mais de oito anos após a Netflix ter iniciado a sua estratégia original, sente agora a necessidade de voltar atrás e justificar porque quer ser tudo para todos.
Por outras palavras, é o momento Amazon para a Netflix.
A gigante do retalho e do cloud computing é conhecida por dizer que é sempre o Primeiro Dia, o que basicamente significa que está sempre obcecada pelo cliente. Mais importante, porém, como escreveu o CEO da Amazon, Jeff Bezos, na sua carta anual aos accionistas de 2017: «O dia 2 é êxtase. Seguido da irrelevância. Seguido de um declínio penoso e doloroso. Seguido da morte. E é por isso que é sempre o Primeiro Dia.»
A Netflix apertou o botão de reiniciar para definir e racionalizar as despesas com os seus conteúdos. Com a Apple, Disney+, AT&T, Comcast e Quibi a juntarem-se à Amazon, YouTube, Hulu e tudo aquilo a que a Netflix gosta de chamar concorrência – dos jogos à televisão tradicional e ao sono – hoje é o Primeiro Dia e não o 12.º Ano da era do streaming.
Isso significa que podemos esperar mais trimestres como este, não apenas para a Netflix, mas para todos.
TEORIA DO CAOS
O CFO da Netflix declarou que a empresa «viu um maior cancelamento, contínuo e sustentado, e há potencial para que isso continue». Se o disse, está dito! Mas pensem, então, da seguinte maneira: a Netflix tenta agora fervorosamente satisfazer todas as necessidades possíveis de todos os espectadores possíveis, a qualquer hora do dia e a qualquer dia da semana. Depois, vende essa oferta por 14 euros por mês, cerca de um quarto a menos que um “pacote básico” de redes de TV como o YouTube TV e de um sexto a um décimo a menos do que um pacote de cabo de alta qualidade. É mais um euro do que era no início deste ano. Um euro que poderia ter dado gorjeta a um empregado de mesa ou comprado algumas bananas, mas, em vez disso, atrairia um potencial espectador para a estreia de um programa de televisão, filme ou especial cerca de cinco vezes por semana. Que negócio. Mas, mesmo assim, o acordo extraordinário não foi o suficiente para conseguir convencer esse conjunto de pessoas a comprometer-se com a Netflix a longo prazo, ou seja, até 30 de Setembro.
O que acontecerá quando a Netflix não for a única a lançar novos conteúdos cinco vezes por semana? Quando a Disney, a Apple e outras estão também a seduzir as pessoas a subscreverem com novas ofertas brilhantes? Num mundo em que é fácil cancelar e subscrever serviços de streaming com apenas alguns cliques?
As guerras de streaming não serão tanto uma guerra como uma série caótica de batalhas dia a dia, talvez até hora a hora, para atrair clientes que podem alternar implacavelmente entre os serviços da mesma maneira que costumavam mudar de canal. Os dias que provavelmente serão os mais importantes serão os do final do trimestre. Mas, na verdade, não haverá um único dia que não seja uma luta cruel para manter as pessoas afastadas da página de cancelamento.
É um negócio muito diferente, para a Netflix e todos as outras, de «mais programas, mais visualizações; mais visualizações, mais subscritores; mais subscritores, mais receitas; mais receitas, mais conteúdos».
A Netflix pode ter divulgado que teve o seu melhor trimestre nas previsões do número de assinantes novos, mas esses dias quase certamente já chegaram ao fim. Os clientes serão mais inconstantes e menos previsíveis do que nunca. O que significa que as empresas multimilionárias que perseguem o futuro do entretenimento também serão mais voláteis do que nunca.
Como reagirão essas empresas? Não é demais acreditar que continuarão a aumentar os preços – não apenas porque precisam de pagar por todo o conteúdo, mas também porque agora desejam ser julgadas pelas suas margens e receitas por utilizador, não pelo crescimento de subscritores. Provavelmente tornarão mais difícil a partilha de contas (algo mencionado pelos executivos da Netflix), e talvez também acabem por dificultar o cancelamento. Talvez esses custos crescentes estejam ocultos em pacotes de serviços de streaming que procuram estabilizar a crueldade dos clientes ao passarem de um drama de prestígio para um programa menos sério ou para um filme.
No passado mês de Setembro, o CEO da Netflix, Reed Hastings, veio a público afirmar que se vive «um mundo totalmente novo» ao ser questionado sobre a nova concorrência no streaming. Numa teleconferência de resultados, já esclareceu que estava a «brincar» ao referir o «drama que se avizinha».
As receitas da Netflix mostram que o novo mundo está aqui, é dramático e o Primeiro Dia será tempestuoso. E esperemos que não acabe a parecer-se com o mundo antigo – o da TV a cabo – antes de nos fartarmos.