“É preciso analisar bem os riscos nas empresas, para não haver surpresas”

por Álvaro de Mendonça

A profissão do gestor de risco é difícil: necessita que se tenha uma visão analítica, porque no momento em que estamos a fazer um plano de prevenção, temos de pensar em riscos que nunca aconteceram naquele lugar, mas que podem vir a acontecer – adianta o gestor, considerado um dos maiores especialistas mundiais em gestão de risco.

Jorge Luzzi acumula a sua missão de presidente da Herco Global com a liderança da vertente de gestão de risco na Brokerslink, empresa global de corretagem da qual a MDS é o accionista de referência. Com mais de quatro décadas de existência, a Herco é uma empresa especializada em consultoria de risco e Enterprise Risk Management (ERM), com uma ampla gama de serviços, que vão desde a gestão, inspecção e monitorização de riscos, à análise de risco em projectos, auditorias de segurança, avaliação de sistemas de protecção e segurança, não se limitando aos riscos seguráveis, mas analisando todos os riscos da empresa.

A gestão de risco é muito diferente consoante as geografias?

A gestão de risco tem uma parte de componente técnica que não varia com as geografias. O conceito geral é parecido e as ideias sobre os riscos também. Por exemplo, a responsabilidade civil dos quadros directivos, a protecção de uma fábrica, ou as coberturas de saúde, são riscos que têm uma componente técnica que não varia. Mas a realidade política das regiões é bastante diferente. Há uma parte, que tem a ver com as legislações nacionais, que muda. Há Estados onde a responsabilidade civil é mais forte do que noutros países e regiões, como acontece nos EUA, por exemplo.
Em geral, as grandes multinacionais fazem um programa mundial de responsabilidade civil específico e ajustado às exigências dos EUA e para o resto do mundo fazem uma apólice separada conjunta, diferente da dos EUA, porque o cálculo actuarial varia muito em função da probabilidade de um risco acontecer. Nos EUA, por exemplo, o assédio sexual é um caso levado muito a sério. Na América Latina a cobertura existe, mas a sinistralidade é muito mais baixa. A Europa está a meio caminho.
Independentemente da cobertura existente, uma pessoa que vá para África, por exemplo, tem um risco de saúde maior do que se for para a Europa ou para os EUA.
O princípio da mutualidade faz com que quanto mais amplo seja o universo de segurados, mais fácil seja a possibilidade de os garantir. Daí a ideia de fazer programas mundiais de coberturas e também de gestão de risco para os riscos não seguráveis, com universos mais alargados, que considerem as distintas realidades e garantam melhores preços. Até há uns anos levava-se em conta a situação concreta de cada um dos países, mas agora as grandes empresas multinacionais preferem ter uma apólice mundial, que cubra a maioria das eventualidades ou sinistros. Mas é preciso analisar bem as situações, para não haver surpresas.
Um exemplo foi o que aconteceu em Bhopal, na Índia, em 1984. A Union Carbide tinha dois grandes sectores de actividade: fabrico de pilhas e produção de produtos agrícolas.

Tiveram um sinistro em Bhopal, na fábrica de produtos agrícolas, quando 40 toneladas de gases tóxicos escaparam para a atmosfera. Para a Union Carbide, Bhopal significava menos de 1% do volume de negócios do grupo. A fuga de gases tóxicos, que anos mais tarde se comprovou ter sido sabotagem de um empregado que fora despedido, causou problemas respiratórios muito graves nas populações locais e o nascimento de crianças com deficiências. Uma catástrofe.
A Union Carbide tinha como política a contratação de apólices locais por um valor equivalente a 10 milhões de dólares em cada país. Para a Índia, naquela altura, dez milhões de dólares era muitíssimo dinheiro e cobria bem todos os custos estimados para possíveis indemnizações a pagar. No entanto, esse valor veio a revelar-se insuficiente e a empresa teve de vender a divisão de pilhas para fazer face às indemnizações Ou seja, devido a uma fábrica que representava menos de 1% do grupo, foi necessário vender uma área de negócio a um novo proprietário, que assumiu também as responsabilidades pelo sinistro.
Se a Union Carbide tivesse contratado um programa mundial em lugar de várias apólices locais, provavelmente teria beneficiado de uma cobertura dos seus riscos mais abrangente, e sem um custo superior. O que significa que o conceito de mutualidade pode, em determinadas circunstâncias, ser prejudicial face à realidade da empresa. Daí que o estudo da realidade de cada mercado seja fundamental para uma empresa multinacional, pois as características de cada país são bastante diferentes. No fim do dia, o mesmo proprietário liquidará os sinistros, sejam estes cobertos por uma apólice local ou um programa mundial, mas a melhor utilização dos recursos existentes e da análise de risco pode significar o sucesso ou o fracasso de toda a operação.

Essas diferenças reflectem-se na realidade?

Por exemplo, os brasileiros são geralmente optimistas e, por isso, podem ter uma política de prevenção que é diferente quando comparada com a de um alemão, que faz sempre tudo com muito planeamento. Algumas vezes isso é muito bom, outras é muito negativo.

Um optimista em excesso não se preocupa com prevenção, em traçar uma política para prevenir sinistros, em antecipar situações de crise, ou até mesmo em contratar um seguro. Mas também não se deixa abater em caso de sinistro e luta para manter a continuidade do negócio. Um asiático encara a realidade de forma muito distinta da de um europeu, de um latino-americano ou de um norte-americano.

Vou dar-lhe um exemplo de uma situação com que lidei quando fui responsável pelo mercado americano de uma grande multinacional. A empresa tinha uma fábrica na Alemanha, onde ocorriam cinco princípios de incêndio por ano, pequenos fogos, dos quais apenas um se transformava de facto em incêndio de dimensão relevante. Numa fábrica localizada no nordeste do Brasil, havia 30 a 40 princípios de incêndio por ano, mas nenhum deles se transformava num grande incêndio. Ou seja, na Alemanha seguiam todos os procedimentos, implementavam todas as medidas de prevenção e quando acontecia um incêndio tinham as medidas de combate. Tudo dentro das normas.

No Brasil havia menos rigor, mas havia menos incêndios. O resultado era devido a diferenças culturais. O que se passava é que o manual de procedimentos na época estava em inglês e não traduzido para português e, por isso, os operários brasileiros não o percebiam; mas ainda assim havia menos incêndios. Fui entrevistar os operários e eles explicaram-me que na localidade havia apenas quatro empresas que empregavam 95% da população e que, se uma fábrica ardesse, provavelmente seria reconstruída em São Paulo. O que significaria ficar desempregado ou emigrar, perdendo contacto com a família e partir para outra vida. Daí o facto de os operários estarem dispostos a arriscar a vida para combater o incêndio, se tal fosse necessário, para não deixarem a fábrica arder. O limite não eram as medidas previstas no manual de prevenção, mas sim que o incêndio não ocorresse.

Falou há pouco de seguros de cobertura global que atenuam essas componentes regionais. É isso?

O conceito de cobertura global tem de ponderar sempre as diferenças do ponto de vista da realidade concreta de cada país. Há muitos Estados que admitem que se possa fazer uma cobertura local noutro país. Na Europa, a livre circulação de serviços permite que um risco em Portugal possa ser coberto na Alemanha, mas tem de fazer uma separação para pagar os impostos devidos em cada um dos países.

Mas fora da Europa não é assim. Por exemplo, uma fábrica na Argentina ou Brasil só permite uma cobertura contratada na Argentina ou Brasil. Um programa global, na realidade, resulta de negociações globais, mas têm de se seguir as regras de cobertura, a legislação e o enquadramento fiscal a nível local, em cada país. Depois existem coberturas mundiais, os chamados DIC DIL (Different in conditions, different in limits), que permitem nivelar coberturas através de uma apólice master.
E isso até pode mudar com o tempo. Por exemplo, há 30 anos, o terrorismo era um grande risco em países como o Peru, com o Sendero Luminoso, ou na Colômbia, com as FARC. E era zero em Londres ou Nova Iorque. Isso mudou radicalmente.

Nos EUA tudo se alterou com os atentados do 11 de Setembro, em Nova Iorque. Antes as cotações consideravam taxas para a sinistralidade de fábricas no meio do Texas ou na Geórgia maiores que as taxas para compensações de acidentes de trabalho em grandes cidades, porque o elemento mais importante era a quantidade de médicos para socorrer um acidentado. Por esse motivo eram piores no interior do que em Nova Iorque, onde as pessoas têm um hospital perto e são bem tratadas. Mas depois do 11 de Setembro, tudo mudou. Trabalhar num prédio alto passou a ser um grande risco, ainda que esteja perto de um hospital.

O gestor de riscos tem que analisar a situação actual da empresa, ponderar potenciais situações futuras e tentar transferir para uma seguradora todos os riscos que puder. No caso de algum risco residual não poder ser transferido para uma seguradora, deverá montar uma estratégia de redução do impacto desse risco, para que não inviabilize a operação.

Entre os riscos em que não é possível encontrar transferência no mercado segurador está o risco de imagem. Actualmente já existem algumas apólices que cobrem danos de imagem, mas os limites ainda são baixos e é muito difícil de estabelecer o sinistro. Há dez ou quinze anos, uma grande multinacional do sector alimentar recebeu uma ameaça escrita de um grupo terrorista, que dizia que iria introduzir um veneno no leite de criança que eles produziam num determinado país africano. E provaram, três ou quatro vezes, que conseguiam iludir a segurança e entrar em algumas das fábricas desse produto. Exigiam um resgate milionário para não contaminar o leite.
O risco de imagem para a empresa, decorrente de venderem leite infantil estragado em África, seria a falta de controlo de qualidade. O problema foi tão grave, que os gestores de risco da empresa recomendaram a suspensão da produção de leite infantil nesse país. Foi a única maneira de solucionar o problema e evitar danos de imagem. Isto também é gestão de riscos. Neste caso de um risco não segurável, em que o gestor de risco também deve estar atento.

Essa complexidade do risco, a nível global, obriga a que, do vosso lado, dos gestores de risco, também tenham de ter organizações globais com presença em todo o lado?

Há realidades diferentes não só do ponto de vista cultural, mas também geográfico. Existem regiões do mundo onde o terrorismo é uma ameaça, e outras onde o problema são os terramotos, como a Califórnia, o Chile ou Peru, e outras onde esse risco é inexistente, como o Brasil ou Argentina. De alguma forma, para aqueles riscos que não são tão comuns, a técnica de como enfrentá-los vai sendo partilhada na comunidade de gestão de riscos. E isso é importante, porque o mundo também está a mudar, e as catástrofes naturais são cada vez maiores e mais frequentes.

Um caso típico é a Itália. Havia terramotos no Sul e no Norte não havia nenhuma actividade sísmica, mas nos últimos cinco anos a sinistralidade parece ter-se deslocado para o centro. Aparentemente chocaram as placas tectónicas europeias e africanas e é isso que está a provocar este tipo de abalo.

Há riscos que antigamente eram mais comuns e que hoje desapareceram, ou quase. E há riscos que, entretanto, apareceram e se tornaram importantes, o que obriga os gestores a acompanhar e a especializarem-se nesses novos tipos de riscos.

A profissão do gestor de risco é exigente, porque no momento em que estamos a fazer um plano de prevenção, temos de pensar em riscos que nunca aconteceram naquele lugar, mas que podem vir a acontecer no futuro.

Mas como é que isso se faz? Se o risco é novo e o cálculo actuarial é normalmente feito com base em registos históricos, como se pode avaliar esse risco?

Se o risco muda, primeiro temos que ver se existem coberturas de seguros. Porque havendo essa possibilidade, o gestor de risco deve transferi-lo para um terceiro, que é a seguradora. O papel do broker é ajudar a fazer um plano de cobertura dos riscos. É preciso pensar em como tratar o risco para evitar que a empresa fique numa situação que a impeça de desenvolver a sua actividade e possa continuar a produzir os produtos que comercializa.

Na empresa, o responsável pela gestão de risco deve recorrer às técnicas de Enterprise Risk Management (ERM), deve ser muito activo e orientado para o risco, mas também tem de ter um comité de risco, onde todas as áreas da empresa dialoguem e identifiquem os riscos. A gestão do risco não é o trabalho de um génio, mas sim o resultado do conhecimento coordenado de todos na empresa, de cima para baixo, começando pelo próprio presidente.

Por exemplo, pode acontecer que o comité de análise de risco descubra que toda a fórmula de um determinado tipo de produção é do conhecimento de apenas três engenheiros, que a qualquer momento podem sair para outra empresa, morrer, ou sofrer qualquer outro tipo de fatalidade. Uma medida de prevenção seria fazer a divulgação das fórmulas técnicas a nível interno junto de um número limitado de engenheiros especializados, sob pena de haver fuga de informação. Ou seja, tal como estabelecemos franquias para os seguros, que é um limite do chamado tecnicamente de apetite de risco e que gera a retenção própria de riscos, tudo exige um nível de análise importante.

Por isso, neste momento, a grande prioridade da gestão de risco integral é a de envolver a administração e a Direcção-Geral da empresa. Quem analisar profundamente qual o tipo de problemas que a empresa vai ter obterá melhores resultados. Nas empresas cotadas com capital aberto, existe a exigência de ter uma política de Enterprise Risk Management ou gestão de riscos integral.

Após o caso da WorldCom nos EUA, muitas pessoas que tinham investido nessa empresa ficaram sem nada, mas os gestores da empresa, que tinham sido remunerados em função dos resultados, não sofreram. Esta situação levou à criação, não apenas de uma lei chamada Sarbanes-Oxley, que passou a responsabilizar pessoalmente os gestores pelos seus actos, mas também conduziu a que o ERM tenha evoluído e mudado.

O ERM parte do conceito de que o gestor de risco é o assessor técnico da equipa, mas os jogadores são cada um dos gestores e directores da empresa. Esta equipa alargada tem de ser coordenada e deve estar familiarizada com o conceito de gestão de riscos.

Os resultados do ERM podem ter um efeito secundário no mercado segurador, pois podem ser identificados riscos que são importantes para os compradores de seguros, mas que o mercado de seguros ainda não visualizou como negócio e, por isso, ainda não disponibiliza soluções. Nesse caso o ERM pode ser também uma ferramenta para traduzir as novas necessidades do segurado para as corretoras e seguradoras.

Qual é a importância das associações e federações internacionais de gestão de risco, como a FERMA ou a IFIRMA?

São muito importantes. Normalmente a actividade relacionada com a cobertura de riscos é levada a cabo por corretores de seguros e por seguradoras, e cada um destes players tem os seus próprios interesses e pontos de vista. Os gestores de risco e as associações têm a vantagem da neutralidade. Um gestor de risco está interessado na actividade de gestão de risco em si, e não para divulgar uma marca. Assim, o foco nas associações é a gestão de risco e o seu desenvolvimento, promovendo-se o benchmarking entre os gestores de risco e os corretores, seguradores, e demais participantes dessa actividade. O grupo MDS gosta de participar nos dois campos para ter um serviço completo e, por isso, estabeleceu a Herco, como empresa dedicada a gestão de riscos.

Basicamente há uma organização mundial, que é uma espécie de fórum mundial, a IFIRMA – Federação Mundial das Associações de Gestão de Risco e Seguros, com sede em Nova Iorque, e que junta todas as associações e federações internacionais, entre as quais a FERMA, Federação Europeia de Associações de Gestão de Risco, a RIMS dos EUA e Canadá, a ALARYS para a América Latina e Caribe e a Parima, que é uma associação regional para a Ásia e Oceânia.

A FERMA, que agrega a gestão de riscos na Europa, é uma associação muito forte e reúne associações nacionais muito importantes, como a alemã, francesa e britânica. Tem sede em Bruxelas, porque muitas das suas actividades exigem contactos com as autoridades da União Europeia, para expor a sua visão, ou para ser consultada sempre que é elaborada uma nova legislação.

Artigo publicado na revista Risco n.º 6 de Outono de 2017.