Chamam-lhes moeda, parecem moeda, mas não são moeda. O que são?

Em boa verdade ninguém o teve porque até os seus detentores nunca lhe puseram a mão ou mesmo a vista em cima. O Bitcoin não existe nem existirá de modo físico. Ele é da espécie digital e é hoje um entre muitos milhares do espaço digital. No site coinmarketcap.com encontrarão informações registadas de mais de 9500 cripto-activos, dos quais, o mais popular, é sem dúvida o Bitcoin. Apesar de ainda hoje, representar metade da capitalização bolsista (isto é, da avaliação do total de cripto-activos expressa em dólares) já representou mais de 80% da mesma até Março de 2017. No total, as “cripto-moedas” valem hoje $2.154.498 milhões, o que representa 10% do total da capitalização da bolsa de Nova Iorque, 20% do Nasdaq Americano e mais de metade da Euronext.

Sendo uma novidade, defendida por um clube de fãs e utilizadores que quase se comportam como uma tribo, mas com interesse enorme em que outros venham também para este mundo digital, é natural que tenhamos mais dúvidas que certezas. E uma delas é sobre a natureza destes activos. Poderão eles ser uma moeda? Os seus defensores irão afirmar que sim até ao limite. Porém, uma moeda tem características que devem ser validadas antes de classificarmos estes activos como tal.

Recordemos que estes activos são gerados através de um processo de mineração, isto é, por desenvolvimento de processos criptográficos muito sofisticados, gerando códigos que não estão na posse de ninguém mas sim da rede de global. Nessa medida eles estão, aparentemente, mais seguros porque não dependem de um, mas da rede. Por outro lado, como assentam na tecnologia de blockchain eles permitem a rastreabilidade de todas as operações em que intervieram, isto é, permitem saber quem deteve aquele activo, de quem o recebeu e a quem o passou. No fundo, saber o todo, o passado e as origens de cada transacção! Isto seria a maravilha dos reguladores e entidades fiscais. Contudo, como as contas de registo destes activos não são associáveis a ninguém, porque a chave é totalmente anónima, essa rastreabilidade é apenas teórica.

As autoridades norte americanas decretaram que a omissão da carteira de cripto-activos é condenável e sujeita, quem incumpre, a pesada pena de prisão. Mas se não houver declaração, também nunca há a possibilidade de se saber a quem pertence determinada conta. Assim, está salvaguardado o sigilo, apesar de se afirmar (e em teoria poder ser) o contrário.

Por outro lado, este anonimato tem também o enorme inconveniente de, em caso de perda do seu código de conta perder o cripto-activo para sempre. Esqueceu? Perdeu! E não será recuperado por ninguém como poderia ser encontrado o baú enterrado no quintal… No mundo digital a perda é definitiva até que a memória regresse. E já sucedeu. Um programador alemão que tinha 7002 Bitcoins na sua carteira perdeu o código de acesso. Neste momento sabe que tem, mas não pode usar, o que corresponderá a $420 milhões. Nem ele nem qualquer um dos seus descendentes poderá alguma vez usufruir desse valor. Agora imagine como vai ser a vida dele a pensar no que poderia estar a fazer com aquele valor…

Voltemos às moedas. É clássico afirmar-se que uma moeda satisfaz determinadas funções: ser unidade de conta, ser meio de troca e poder ser meio de entesouramento.

Uma primordial função da moeda é poder ser a base de como se estabelecem preços numa sociedade. Uma moeda é uma referência comum. Se não existisse teríamos de estabelecer os preços de todo o tipo de bens ou serviços contra todo o tipo de bens ou serviços. Quanto custa este automóvel? Esta pergunta dificilmente teria resposta porque exigia primeiro que se perguntasse em que bens queria que respondesse… Se respondesse que queria o preço do automóvel em horas de aulas de Finanças para pagar, a resposta seria muito difícil de dar… Assim é fácil. O preço é estabelecido em euros e estabeleço o valor da hora de aulas em euros também. E assim é simples entendermo-nos. Mas ser unidade de conta tem ainda outra vantagem: permite o registo histórico das transacções e a contagem da actividade de modo simples. Permite condensar num simples número quanto vendeu o merceeiro apesar de ter vendido centenas de produtos diferentes. E permite estabelecer contratos com pagamentos futuros! Logo, ser unidade de conta implica uma estabilidade mínima do seu valor! Quando a estabilidade de valor não está assegurada, a referência não pode servir. Os cripto-activos têm sido tudo menos estáveis! Se quisesse pagar um automóvel de 30.000 euros com bitcoins (BTC), teria precisado de três BTC em Outubro, dois em Novembro, um em Janeiro de 2021 e hoje só precisava de meio! Quem pagaria alguma coisa com tal moeda sabendo que amanhã poderá valer uma fortuna?

Por outro lado a moeda tem de ser reconhecida como meio de troca o que lhe é conferido pelo curso legal forçado. Isto é, ao ser assumida como meio de pagamento por um Estado, todos os cidadãos desse Estado terão de aceitar a moeda em curso para liquidar dívidas ou para vender bens ou serviços. Um comerciante não pode recusar a venda de bens a quem apresentar a moeda com curso legal para liquidar a compra. Apesar de alguns anunciarem-se disponíveis para aceitar cripto-activos como meio de troca pelos seus serviços, não o são por todos, nem têm de ser.

Por fim a moeda pode ser usada como meio de entesouramento ou poupança. E neste aspecto, apesar destes cripto-activos não terem por base qualquer valor fundamental suportado por direitos ou por fluxos financeiros futuros, sendo activos especulativos, começam a ficar estabelecidos como meios de aplicação alternativa de investimento.

Contudo, é preciso ter em conta que nada os garante ou lhe dá valor intrínseco. E se é certo que o ouro pode ser usado para outros fins, também a quantidade que é usada para esses fins é diminuta. Porém o homem, com base na sua materialidade e características físicas, há milhares de anos que lhe reconhece colectivamente capacidade de armazenamento de valor.

Os cripto-activos, não tendo qualquer materialidade, direitos subjacentes ou fluxos financeiros futuros vivem da exclusiva circunstância de todos os olharem como alguma coisa que todos aceitam ter valor. Mas no dia em que deixarem de acreditar que outros acreditam que todos acreditam… O valor esfuma-se como a luz que se apaga. E não se esqueçam de que precisamos mesmo de uma rede que valide a posse e a transferência dos cripto-activos.

Em suma, chamam-lhes moedas, parecem moedas, mas não são moedas. O que são? São cripto-activos. Por enquanto.

Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 182 de Maio de 2021

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