O take over do Estado à Fundação EDP, através de Serralves

Por Manuel Falcão, www.sfmedia.org

Quando a Fundação de Serralves foi criada em 1989, com o objectivo de sensibilizar o público para a arte contemporânea e o ambiente, o país ganhou um novo Museu, ainda por cima com a participação da sociedade civil nortenha que integrou o grupo dos Fundadores, dinamizado pelo Estado. Ao longo dos anos a actividade de Serralves tem sido positiva, baseada exactamente na diversidade, numa alternativa ao que se fazia noutros pontos do território e na criação de oportunidades para artistas portugueses e estrangeiros. A criação de Serralves veio acrescentar valor ao país e ao circuito dos museus portugueses. Com o correr dos anos criou programas de circulação das obras da sua colecção, entretanto constituída, por outros museus no interior do país e até extensões de exposições a Lisboa – como acontece agora com as fotografias de Manoel de Oliveira, que estão na Gulbenkian. Serralves, diga-se, recebe mais do Estado do que muitos museus nacionais, que bem precisariam de ter mais recursos.

A decisão, conhecida há dias, de colocar a programação da Fundação EDP, no MAAT e na Central Tejo, na dependência de Serralves estreita a oferta em vez de a alargar. Essa decisão inverteu o sentido da criação de maior diversidade e de mais escolhas e abordagens de programação cultural.

Esta decisão, noticiada como estando a ser negociada há algum tempo, não pode ter sido tomada sem o conhecimento e concordância do Estado, através do Ministério da Cultura. E isto coloca uma outra questão neste processo: por muita que seja a importância dos privados em Serralves, a verdade é que a maioria do seu financiamento vem do Ministério da Cultura, que aliás nomeia dois administradores, ambos com o cargo de vice-presidentes da Fundação de Serralves. Actualmente eles são a ex-Ministra da Cultura de José Sócrates, Isabel Pires de Lima, e o historiador José Pacheco Pereira, ambos nortenhos, como convém às circunstâncias. Isabel Pires de Lima foi a Ministra da Cultura cujo mandato ficou marcado pela recusa da autorização de um exaustivo exame forense e antropológico aos restos mortais de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal que uma investigadora e antropóloga se propunha levar a cabo. Já José Pacheco Pereira tem, ao longo dos anos, defendido  que a política cultural devia privilegiar a “concentração dos recursos escassos na salvaguarda do nosso património artístico e cultural”, nunca se tendo mostrado muito defensor do financiamento da criação contemporânea pelo Estado. É difícil de imaginar que Pacheco Pereira e Isabel Pires de Lima, com o cargo que ocupam, não estivessem a par da passagem da coordenação da programação do MAAT e Central Tejo para Serralves. Não é lógico que não tenham falado sobre o tema com a tutela que os nomeou. Face ao resultado agora público é evidente que o Ministério da Cultura deu o seu aval a esta concentração de poder em Serralves. O problema aqui é que a Fundação EDP não dependia do Estado e Serralves depende do Estado, como já veremos. O Relatório e Contas da instituição referente a 2020 esclarece a dimensão da dependência: “O Subsídio do Estado Português, atribuído estatutariamente à Fundação para suprir os gastos de funcionamento, ascendeu a 4.100 k€, mais 138 k€ do que o valor atribuído em 2019 (…) fixando-se em 46% dos rendimentos totais.” Entretanto, o mesmo documento indica que os apoios mecenáticos em 2020 foram 28% dos rendimentos totais de Serralves. No capítulo de perspectivas para 2021 o Relatório e Contas de 2020 de Serralves não indica nada sobre o tipo de movimento agora realizado e estabelecia como prioridade o digital, indicando que “Serralves dará cada vez mais importância à sua programação online, ferramenta a partir da qual consegue chegar ao público, sem fronteiras nem barreiras que qualquer confinamento lhe possa impor.”

O que se passa é que, na prática, a colocação da programação da Fundação EDP na dependência da Fundação de Serralves vai no sentido do reforço da intervenção do Estado nas instituições culturais, o que não era certamente o que se esperava da tradição liberal, histórica, do norte do país e do Porto em particular. Os méritos de Serralves são muitos, indiscutivelmente. Mas creio que os seus fundadores privados não tinham a ambição de estreitar a oferta e sim de a alargar. Todo este processo está envolto numa nebulosa onde mais uma vez não se compreende o que o Governo pretende.