O poder local.

Por Manuel Lopes da Costa, Empresário

 

Vêm aí as eleições autárquicas e “Há 31 câmaras que nunca mudaram de mãos. Cerca de 10% das autarquias portuguesas estiveram sempre nas mãos do mesmo partido: 11 são do PSD, outras 11 são do PS e nove da CDU. Na maioria são câmaras pequenas, mas algumas estão localizadas na Área Metropolitana de Lisboa, como Odivelas ou Palmela” (in publico.pt de 29/06/2021). Se esta constância se devesse exclusivamente ao mérito dos seus autarcas, nada a dizer. Nalguns casos assim é mas, infelizmente, temos exemplos de câmaras municipais onde o caciquismo impera ou imperou durante anos. Os abusos no exercício do poder local foram tais que até houve a necessidade de legislar no sentido de limitar as reeleições contínuas dos presidentes de câmara. Alguns tiveram mesmo longevidades históricas. Mas, à parte alguns casos de polícia conhecidos e que infelizmente sempre existem seja qual for a atividade, essas longevidades, na sua grande maioria, não trouxeram problemas de maior e até foram bastante benéficas para as populações.

O grande problema das câmaras municipais reside normalmente em dois aspetos que se complementam mutuamente: a legislação e os seus quadros permanentes. Um dos aspetos mais absurdos que, por um lado, condiciona o investimento, a iniciativa e o empreendedorismo e dá azo ao maior dos abusos por parte dos mangas de alpaca por outro, é a exigência ­— que classifico absurda e inútil ­— da elaboração dos planos de pormenor. Estes planos, que exigem a intervenção de um vasto conjunto de intervenientes — desde bombeiros a técnicos especializados nas mais diversas áreas — demoram tempos infinitos até ficarem prontos e, quando finalmente o ficam, estão desatualizados. Mais: são elaborados pelos técnicos camarários mas pagos pelos requerentes. Quem deseja realizar qualquer tipo de investimento que exija a construção de algo é obrigado a pagar por um plano de pormenor da zona relativa a esse investimento. É uma atividade que só serve para autoalimentar de trabalho os funcionários e técnicos camarários cujo tempo e dinheiro dos contribuintes poderia ser bem melhor aproveitado ao serviço das populações noutras atividades. Não é segredo que, durante anos, foi vox populi que, para resolver e conseguir uma aprovação mais rápida dos projetos em algumas câmaras, a única solução passava por contratar a elaboração desse mesmo projeto aos gabinetes que pertenciam, direta ou indiretamente, ao arquiteto ou engenheiro responsável pelo urbanismo dessas câmaras. O caciquismo existente não é, como muito se quis fazer crer, só do presidente da câmara que foi reeleito várias vezes. Este, pelo menos, tinha e tem legitimidade democrática conferida pela eleição. O verdadeiro caciquismo é de quem detém cargos camarários para os quais foi indigitado, e não eleito. Cargos esses com muito poder de decisão e poder de atrapalhar ou facilitar a vida de muitos munícipes. Casos como o de “Manuel Salgado. Há 14 anos a ser o DLT (Dono de Lisboa Toda). Investigações da PJ envolvem obras autorizadas pelo arquiteto que de 2007 a fevereiro passado, na vereação ou como presidente da SRU, controlou o essencial da política urbanística de Lisboa – e ainda hoje é consultor de Medina” (in dn.pt de 21/04/2021) não são infelizmente únicos. Existem em quase todas as autarquias verdadeiras histórias dantescas de projetos à espera de aprovação e de construções à espera de licença de habitação há 5, 10, 15 ou mais anos. A situação é tal que o episódio anedótico de quem quer abrir uma janela numa empena deverá, de modo a ver a sua pretensão aprovada pela câmara em tempo oportuno, começar por abrir a mesma clandestinamente submetendo de seguida um requerimento para fechar a mesma, de modo a receber gratuitamente trinta ou mais razões pelas quais a janela não pode ser fechada, é cada vez mais real.

Portugal tem 308 municípios, 278 no Continente, 11 na Madeira e 19 nos Açores. Em meu entender, são câmaras municipais a mais. Com metade faríamos certamente igual e de forma mais económica.  No entanto, há um problema: na maioria dos municípios, a câmara é o maior empregador da região. Logo, se eliminarmos a câmara, invariavelmente aumentamos esse flagelo que é o desemprego, algo que devemos evitar nos dias de hoje. Mas, de futuro, a racionalização do número de câmaras municipais é, certamente, algo que deveremos pensar. Por outro lado, temos o monstro que é a câmara de Lisboa. À notícia falsa “Há dois anos, a CMLisboa tinha 10 mil funcionários. Hoje tem 13 mil.” (Tweet @brunofigueiredo) a CML contrapôs que “tem efetivamente em funções 9428 colaboradores dos quais 236 técnicos superiores de Direito no seu Mapa de Pessoal de 2021 e não 400 como erradamente se refere. Quanto aos arquitetos, a Câmara Municipal de Lisboa tem efetivamente em funções 347 profissionais” (in observador.pt de 22/06/2021). E a minha pergunta é: para quê tanta gente? Haverá efetivamente trabalho para tantos ou andarão eles próprios a alimentarem-se uns aos outros de burocracias e autorizações sem fim. Um dos paradoxos desta situação é que em muitas câmaras até existem falta de recursos, mas dos bons, dos que sabem fazer, de técnicos efetivamente úteis. Mas, infelizmente, os lugares de quadros efetivos estão preenchidos por assessores, filhos e amigos ou filiados no partido político reinante — os chamados “boys” — que em nada ajudam e muitas vezes só atrapalham. Um bom exemplo desta gestão de recursos: “A família de Carlos César, o seu poder, cargos e influência, o pai preside ao partido, a mulher, Luísa, manda na Casa da Autonomia, o filho é deputado regional, a nora é assessora e o irmão era-o até há pouco” (in observador.pt de 21/05/2016).

Advogo que cada câmara, cada organismo publico deveria, em cada instante e em tempo real, disponibilizar aos cidadãos informação sobre onde se encontra o seu processo, há quanto tempo está o mesmo parado em determinada instância, quem tem que o apreciar, aprovar e deferir e quanto tempo previsivelmente falta para a conclusão do mesmo. Isto permitiria uma maior transparência e responsabilização pela conclusão dos mesmos. Demonstraria respeito pelos munícipes.

Mas, como pedir que respeitem os munícipes, os contribuintes e os cidadãos quando os exemplos, que deveriam vir de cima, não vêm? Não nos podemos escandalizar quando lemos “Residentes da Grande Lisboa estão a ‘fintar’ restrições de fim de semana, mostram dados da mobilidade” (in multinews.sapo.pt de 29/06/2021) quando “Em vez de Sevilha, Ferro Rodrigues rumou ao Algarve em fim de semana de restrições. Presidente da Assembleia da República esteve na praia da Altura e pernoitou no Eurotel, onde, segundo o jornal Inevitável, também esteve hospedada a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas.” (in observador.pt de 28/06/2021). Haja decoro. Haja paciência. Então, “Kommé”? Estes altos responsáveis da República, a segunda figura do estado e a diretora-geral da Saúde não vivem na Área Metropolitana de Lisboa? E vivendo, mesmo que estejam vacinados, mesmo que estejam testados, mesmo que tenham certificado digital COVID-19, não acham que devem dar o exemplo? Não acreditam que, por respeito a toda uma população que o governo confinou durante o fim de semana ou ainda que por respeito a todo um conjunto de empresários da cultura, da restauração, dos bares e discotecas e dos festivais, entre outros, e que foram altamente penalizados pelas restrições governamentais impostas, deveriam evitar sair da Área Metropolitana de Lisboa e passar fins de semana nomeadamente onde a transmissibilidade do vírus é das mais significativas: “Escolas fechadas, casos a aumentar no Algarve” (in publico.pt de 28/07/2021).

Sinceramente, nem a nomenklatura dos países soviéticos se lembraria de uma coisa destas ou, como diria o Diácono Remédios: “Não havia necessidade…”. Neste capítulo temos que reconhecer que o senhor Primeiro-Ministro tem tido um comportamento exemplar. Isolou-se no Natal, voltou a isolar-se agora: “Sozinho no palácio. António Costa passa Natal isolado” (in wort.lu de 24/12/2020). Infelizmente nem todos lhe seguem o exemplo.

Existe claramente em Portugal uma classe política que acredita que está acima da restante população. Que pode mais do que os outros e que está convencida que as leis da República não lhe são aplicáveis. Está mal, muito mal! E, enquanto assim for, como exigir aos restantes funcionários públicos — nomeadamente aos autárquicos ­— que respeitem as populações e que evitem criar dificuldades com o intuito de vender facilidades. Mais do que nunca, Portugal precisa de gente séria nos cargos públicos. A bem das próximas gerações, Portugal precisa de gente com sentido de estado. Precisa, muito sinceramente, que os melhores, os mais capazes, deixem de se esconder por detrás do seu bem-estar pessoal e tenham a coragem de vir tomar conta do que também é deles, ou seja, de Portugal.

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