Alexandre soares dos santos: o que ficou por contar do ex-líder da Jerónimo Martins?

Muito se tem escrito e testemunhado sobre a vida, a obra e a personalidade de Alexandre Soares dos Santos. Por ter tido a sorte de termos partilhado uma relação muito discreta e simples de amizade durante muitos anos, sem qualquer outro tipo de interesses (jamais lhe pedi qualquer favor por mais que se disponibilizasse nem aceitei nenhum dos desafios que me fez ao longo dos últimos anos), foi-me pedido que partilhasse um testemunho mais pessoal.

Hesitei muito em escrever o que quer que fosse. Primeiro, por não querer ter nenhum crédito ou vanglória por dar este testemunho pessoal e, depois, por ser tão difícil escrever pouco sobre alguém tão grande, tão especial e tão marcante. Serão, por isso, umas simples palavras sem dono sobre o dono de gestos tão simples.

Diversas vezes afirmou que antes de ser empresário era um cristão e que eram os principais valores cristãos que o orientavam e que o tinham ajudado a ser um empresário de sucesso. A preocupação pela cidadania, pelo mundo e pelos outros como critérios de gestão e de vida, está bem espelhada em causas que lhe eram tão queridas, tão próximas e tão “suas” como o Arco Maior, o Semear, a Fundação Francisco Manuel dos Santos ou a Fundação Oceano Azul, que não se cansava de as elogiar e de se orgulhar. Tudo fazia sentido se fosse para deixar uma pegada para um mundo melhor ou para tornar melhor e mais fácil o mundo e as pegadas dos outros. Esses outros eramos tantos com quem se preocupava e que estava atento que o tornava tão próximo e tão humano.

Em Dezembro do ano passado, ao entrar no meu escritório de manhã cedo, recebo um telefonema para saber de um nosso muito amigo comum, “internado”, e se poderia precisar de alguma coisa. Ao saber que estava a ser muito bem acompanhado e que até lhe levavam diariamente um sumo de laranja natural, mandou entregar no dia seguinte uma enorme saca com laranjas suficientes para fazerem sumos até final do ano, para ele e para todos os outros que estavam na mesma situação.

Há uns 10 anos um amigo nosso foi operado a um cancro no pulmão no IPO e ligou-me a dizer: “gostava que não lhe faltasse nada de nada, nem no hospital nem quando for para casa, por isso tudo o que for preciso, incluindo apoio domiciliário, por favor diz-me… mas que não saiba que fui eu”.

Por ser tão exigente consigo, com os seus valores e com as suas crenças era também muito exigente com os outros. Fazia-o ter um sentido muito crítico e exigente, principalmente com os que lhe eram mais próximos, em quem confiava e delegava e com quem governava grandes causas (o País, a igreja, as grandes empresas). Várias vezes a conversa descambava para uma crítica mais feroz e assertiva e várias vezes brincava com ele dizendo-lhe “hoje está com os azeites… mas é só azeite Gallo”. E com um leve sorriso mudávamos rapidamente de assunto. Era implacável na crítica, porque tinha bem presente que o poder é um serviço e não para se ser servido. Tinha sempre razão.

Num dos jantares no Algarve com a minha mulher e comigo, deu a mão à sua mulher e disse-nos “é a mulher da minha vida, continuo apaixonado por ela”. É impossível olhar para esta vida tão cheia e tão grande sem se perceber que por detrás de um grande homem, mais uma vez está uma grande mulher, com quem se casou há mais de 60 anos. Não se pode fazer este tributo sem se “condecorar” com a ordem de mérito, de entrega, de companhia, de amor, de paciência, de tolerância, de muito esforço e de dedicação a quem foi sempre o seu porto seguro, a sua segurança, o seu maior apoio, a sua confidente, a sua luz e a sua sombra. E que difícil que é ser sombra num mundo em que se anseia e ambiciona por brilhar ou por se estar ao sol. Lembro-me duma frase sua ao se despedir de nós em Ourém no ano passado, que demonstra a sua grande clarividência e sabedoria: “desta vida não levamos nada e o que deixamos não se compra”.

Em 2017, durante um pequeno almoço, desabafou-me que o seu caminho e missão estavam a chegar ao fim, que já não tinha muito mais para dar. Puro engano, esse caminho há muito que deixou de ser só seu, só de areia ou de estrada alcatroada, mas é um caminho feito de obras, de empreendimentos, de vida, de família, de gente, de desfavorecidos, de relações… e por isso não se apaga nem tem fim… perguntei-lhe se tinha a noção do impacto que a sua presença tinha nos outros e se imaginaria o quanto milhares e milhares de pessoas não dariam para passar apenas cinco minutos a falar com melhor ele. “Talvez tenhas razão, vou fazer isso”. E mais uma vez fez a diferença com o seu testemunho em muitos momentos e a muitas pessoas. Porque a sua presença era mesmo inspiradora, a sua liberdade em chamar os “bois pelos nomes” davam-nos a coragem para lutarmos pelo mais correcto e porque era o exemplo vivo de que não são os pedestais e as passerelles que tornam os homens grandes, mas sim a seriedade, o mérito e o amor.

Como disse D. Armando Esteves Domingues na missa de 7.º dia, podemos ter bens materiais, empresas, conforto, capacidade financeira, se tivermos sempre as mãos abertas para os outros. Mas umas mãos abertas viradas para fora, não viradas para nós. Não me vou lembrar do Alexandre Soares do Santos apenas quando entrar num Pingo Doce, ou quando comer um Magnum, ou quando for ao Oceanário, ou quando assistir a um debate sobre um estudo sociológico da Fundação FMS… vou lembrar-me sempre que a vida se cruzar comigo e me pedir também para ter as minhas mãos abertas, o coração aberto e puder fazer a diferença na vida dos outros e ser especial para cada um. São as suas mãos abertas que recordarei para sempre e são os seus abraços fortes, longos e apertados que me motivarão ainda mais a acolher os outros com humildade e com verdadeiro sentido cristão.

Que privilégio o meu, que dádiva a vida me deu. Que honra e que orgulho. Tantas conversas, tanta partilha, tantos conselhos. Mudei completamente a minha vida depois de um telefonema que me fez. Talvez seja por isso que não consigo apagar o seu número no meu telemóvel… porque para mim, e para tantos de nós, continuará sempre vivo… apenas estará do outro lado.

Assinado: Eu como tantos outros.

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