O fim dos bancos como nós os conhecemos
É quase uma certeza que as empresas Fintech desempenharão um papel significativo no modo como, no futuro próximo, passaremos a utilizar serviços bancários e financeiros. A existência de bancos, até pelo peso e influência que têm na economia de alguns países, pode não estar em perigo. Mas, por tudo o que acabámos de expor, estamos em crer que os bancos, como nós os conhecemos, estão próximos do fim.
Por Hugo Rosa Ferreira
Advogado e sócio coordenador da Área de Direito Financeiro da PLMJ Advogados
Desde o início de 2015 até ao final de Junho de 2017, o investimento global em empresas que apostam nas novas tecnologias para competir com as instituições tradicionais na oferta de produtos e na prestação de serviços financeiros, habitualmente designadas por empresas Fintech, foi de 83 mil milhões de dólares, de acordo com os relatórios periódicos The Pulse of Fintech, publicados pela consultora KPMG. Não é difícil perceber o interesse em investir nesta área: o sector financeiro é visto como um dos três greenfields ou sectores ainda por explorar pelas novas tecnologias, juntamente com os sectores da educação e da saúde. Mas esta é uma realidade que irá sofrer profundas alterações nos próximos anos, ao ponto de podermos questionar-nos se não estaremos a testemunhar o fim dos bancos como nós os conhecemos.
O sector bancário não é igual em todos os países. Aliás, é bastante diferente. Se, nos Estados Unidos da América, o sector financeiro é extremamente atomizado, com um número elevadíssimo de pequenas instituições e uma segregação substancial entre banca de retalho, banca de investimento, instituições que concedem crédito hipotecário e instituições de aconselhamento e gestão de patrimónios, em Portugal o mercado, para todos estes produtos e serviços, encontra-se profunda e historicamente concentrado em quatro ou cinco grandes bancos.
Por um lado, um sector financeiro mais disperso tenderá a ser mais volátil e permeável a mudanças como as que as empresas Fintech procuram introduzir nos hábitos dos consumidores destes produtos e serviços. Não é, por isso, de estranhar que, em países como os Estados Unidos da América ou o Reino Unido, a penetração destas empresas seja já uma realidade que afecta os bancos tradicionais, embora este impacto acabe por ser ainda relativo, também em resultado das referidas características do sector. Pode dizer-se que as fatias do bolo que as empresas Fintech vão comendo são relativamente finas.
Por outro lado, um sector financeiro mais concentrado tenderá a ser mais estável e menos permeável a estas mudanças. Contudo, o impacto que as mesmas podem vir a ter na actividade dos bancos tradicionais é substancialmente diferente, muito mais disruptor, porquanto, usando a mesma metáfora, as fatias do bolo que as empresas Fintech poderão vir a comer em países como Portugal são substancialmente mais grossas.
Os bancos tradicionais estão cientes deste risco e já começaram a preparar-se para o impacto, seja através do desenvolvimento de soluções tecnológicas próprias, que lhes permitam competir com as empresas Fintech – algo que reputamos de difícil sucesso sem uma profunda reestruturação do seu modelo de negócio, em particular sem uma redução substancial dos seus custos com recursos humanos –, seja através do investimento directo em, ou de parcerias com, empresas Fintech, procurando assim recuperar parte da fatia do bolo. Exemplo disso mesmo é a recente conjugação de esforços por parte de seis bancos liderados pela UBS e incluindo o HSBC e o Credit Suisse, para a criação de uma moeda virtual baseada na tecnologia blockchain, para a liquidação de operações financeiras.
Um dos obstáculos que os bancos europeus enfrentam quando desenvolvem soluções tecnológicas próprias – e que, por exemplo, os bancos norte-americanos não enfrentam – prende-se com o facto de as despesas que têm com software serem consideradas um custo e não um investimento, de acordo com as regras bancárias europeias, consumindo assim uma parte de um activo extremamente importante: capital. Este obstáculo é conhecido pelas instituições europeias, ao ponto de uma porta-voz da Comissão Europeia ter declarado recentemente que a Comissão está em diálogo com os bancos e outras instituições, no sentido de perceber melhor a interacção entre o tratamento contabilístico e o tratamento prudencial das despesas com software.
As pressões dos bancos tradicionais sobre as instituições governamentais e supranacionais, como a Comissão Europeia, não se limitam, contudo, a esta questão do custo – ou investimento – em soluções tecnológicas próprias. O facto de as empresas Fintech operarem em zonas do sector financeiro pouco, e em alguns casos, nada reguladas tem levado os bancos tradicionais a exigirem alterações à regulação existente que, de algum modo, consiga trazer para debaixo do mesmo chapéu regulatório as empresas Fintech, clamando por uma regulação focada não na natureza das instituições, que acaba por deixar escapar, por exemplo, as que não precisam de licença bancária para prestar os seus serviços, mas antes na actividade desenvolvida, atraindo assim quaisquer instituições ou empresas que prestem serviços que se enquadrem no conceito – que se pretende lato – de serviços financeiros (quem diria que um dia iríamos ver instituições financeiras clamarem por mais regulação…).
Esta reacção dos bancos tradicionais demonstra, por um lado, a seriedade da ameaça das empresas Fintech e, por outro lado, as dificuldades que os bancos tradicionais têm em adaptar-se rapidamente a um mundo cada vez mais tecnológico, mais móvel, mais táctil e menos tolerante para com serviços lentos, caros e que pouco ou nenhum valor acrescentam.
Porém, ao mesmo tempo que a Comissão Europeia tenta encontrar formas de aliviar os bancos tradicionais do peso que os custos com software têm no consumo de capital, eis que está para breve – é já em 2018 – a entrada em vigor da PSD2, a Directiva 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno. O potencial disruptivo da PSD2 é, muito provavelmente, semelhante àquele emergente das empresas Fintech, sendo certo que, por serem complementares, tal potencial resulta de a conjugação da entrada em vigor da PSD2 com o advento das empresas Fintech ser uma mistura explosiva.
Resumidamente, a PSD2 irá permitir que os clientes dos bancos tradicionais recorram a terceiros para realizarem muitas das operações, que hoje têm que ser realizadas através daqueles. Não é ficção científica pensar que daqui a dois ou três anos poderemos estar a fazer pagamentos de serviços através do Facebook, que a Google analise as nossas despesas mensais e nos aconselhe a poupar jantando menos vezes fora, ou que possamos emprestar 20 euros a um amigo aproximando o nosso telemóvel ao dele, sabendo que o nosso dinheiro continua depositado em segurança num banco (ou, pelo menos, é assim que gostamos de pensar).
Tudo isto, ou já é possível, ou poderá tornar-se uma realidade a partir do momento em que a PSD2 abrir – escancarar talvez seja o termo mais apropriado – as portas de acesso às contas bancárias e respectiva informação a quem os clientes quiserem, sejam outros bancos ou uma qualquer empresa Fintech que revolucione o modo como emprestamos dinheiro aos nossos amigos através de uma app.
Se nos recordarmos que, para compensar o facto de não poderem aplicar taxas de juro negativas aos depósitos à ordem e de a receita com a concessão de crédito ter diminuído substancialmente nos últimos anos, os bancos tradicionais recorrem às comissões por serviços, como os que acabámos de enunciar, para sobreviver, perceberemos rapidamente quão grossa pode ser a fatia do bolo que as empresas Fintech poderão vir a “roubar” aos bancos tradicionais.
Por falar em concessão de crédito, uma outra área com um potencial disruptivo enorme é a do financiamento directo (ou peer-to-peer lending ou financiamento P2P, como também é conhecido), de que as plataformas de financiamento colaborativo (crowdfunding e crowdlending) são apenas uma das configurações possíveis.
A crise financeira de 2008 colocou uma pressão enorme na actividade de concessão de crédito dos bancos tradicionais, em resultado das crescentes exigências em matéria de fundos próprios e de rigor na aprovação de operações. Em Portugal, em particular, é evidente a contracção no financiamento bancário à economia. Só desde finais de 2012, o montante global de crédito bancário às empresas diminuiu 24%. Não é por isso de estranhar que as empresas, sobretudo as PME, as quais, pelas suas características, estão menos capacitadas para recorrer, ou ao mercado bancário internacional ou ao mercado de capitais, olhem cada vez mais para fontes alternativas de financiamento.
De acordo com dados publicados no portal de estatísticas www.statista.com, o montante global de financiamentos a PME, através de plataformas de crowdlending em 2017, deverá ascender a 190 mil milhões de dólares, sendo que se estima que este montante crescerá 30% por ano até 2021, quando ultrapassará os 500 mil milhões de dólares e, estamos em crer, este número poderá ser conservador.
O crowdlending tem hoje em Portugal um enquadramento legal e regulamentar específico, incidente sobretudo na regulação das plataformas tecnológicas nas quais aquele se baseia. Na realidade, parte desse enquadramento ainda não entrou em vigor. Porém, mesmo quando a regulamentação em falta for aprovada e todo o quadro legal e regulamentar entrar em vigor, o crowdlending continuará a revestir uma natureza, diríamos, parabancária, em resultado de, por um lado, as pessoas e entidades que emprestam não estarem sujeitas à regulação e supervisão do Banco de Portugal (contanto que não concedam estes empréstimos a título profissional) e de, por outro lado, os empréstimos concedidos revestirem a natureza jurídica de mútuos civis.
Ora, se as empresas Fintech começarem a comer uma fatia das receitas que os bancos tradicionais obtêm da intermediação de operações de pagamento e transferências – incluindo operações cambiais nas quais os bancos ganham também na taxa de câmbio que praticam – e uma fatia das receitas que os bancos tradicionais obtêm da concessão de crédito a empresas, não é difícil perceber que, ou os bancos tradicionais se adaptam rapidamente ou, não apenas eles mas, sobretudo, os seus trabalhadores e os seus accionistas, sofrerão consequências muito negativas.
A tudo o que antecede poderíamos ainda acrescentar um outro elemento potencialmente disruptor da actividade bancária tradicional: a moeda electrónica (não confundir com criptomoedas ou esquemas de moedas virtuais, como a Bitcoin).
A moeda electrónica, ou e-money, existe há vários anos, ainda que em Portugal apenas recentemente tenha sido tornada realidade. Resumidamente, a moeda electrónica é uma alternativa digital ao dinheiro físico, que permite realizar pagamentos e transferências de fundos que se encontrem “depositados” num cartão ou num telemóvel, através de plataformas digitais. A moeda electrónica não é mais do que a visão de uma sociedade sem dinheiro físico (cashless society), algo que parece futurista num país do Sul da Europa, mas que é já uma realidade muito próxima nos países nórdicos (na Noruega, apenas 5% das transacções são efectuadas em dinheiro físico).
Estamos em crer que, se a utilização da moeda electrónica se generalizasse, um número significativo dos bancos tradicionais enfrentaria um obstáculo praticamente intransponível, dado que a necessidade da respectiva existência começaria a ser posta em causa, em face do modelo de negócio, regras prudenciais e da estrutura que as instituições de moeda electrónica podem adoptar no que respeita aos depósitos e aos pagamentos e transferências de fundos. No limite, e com a excepção relevante da concessão de crédito, as instituições de moeda electrónica poderiam oferecer um leque tão alargado de produtos e serviços bancários típicos, que o mercado bancário sofreria uma contracção substancial, à qual diversas instituições dificilmente conseguiriam sobreviver.
O que vai salvando os bancos tradicionais é, precisamente, a tradição, ou seja, o facto de a mudança de dinheiro físico para dinheiro virtual e de instituições (aparentemente) sólidas e presentes na sociedade há muitos anos para empresas Fintech, criadas recentemente por grupos de jovens que não acabam a universidade, ser uma alteração cultural que, como tal, carece de tempo até ser uma realidade.
Seja como for, entre a moeda electrónica, as moedas virtuais e todos os produtos e serviços que as empresas Fintech podem já e poderão no futuro vir a oferecer aos particulares e às empresas, sobretudo às PME, estamos em crer que não se trata de uma questão de “se”, mas antes de uma questão de “quando” é que esta alteração cultural virá a ser uma realidade.
Vivemos, a vários níveis, a uma velocidade cada vez maior. A Lei de Moore, aquela segundo a qual o número de transístores num circuito integrado duplicaria de dois em dois anos e que veio a provar-se verdadeira durante quase quatro décadas, parece hoje aplicável a muitas outras realidades, designadamente ao que é possível fazer de modo totalmente digital, apenas com uma ligação à internet (a televisão, tal como nós a conhecíamos, também já acabou…).
Os bancos tradicionais, enquanto instituições com uma dimensão considerável alicerçadas em modelos testados, mas também por isso menos flexíveis, movem-se mais lentamente do que as jovens, pequenas e ágeis empresas Fintech. É quase uma certeza que as empresas Fintech desempenharão um papel significativo no modo como, no futuro próximo, passaremos a utilizar serviços bancários e financeiros. A existência de bancos, até pelo peso e influência que têm na economia de alguns países, pode não estar em perigo. Mas, por tudo o que acabámos de expor, estamos em crer que os bancos, como nós os conhecemos, estão próximos do fim.
Artigo publicado na revista Risco n.º 6 de Set/Novembro de 2017.