RTP: o contrato de concessão e o futuro do serviço público audiovisual

Por Manuel Falcão – sfmedia.org

Sobre o contrato de concessão do serviço público de rádio e de televisão, atribuído à RTP e cuja renovação e reformulação agora se encontra em debate público, tenho uma certeza: o serviço público audiovisual nos dias de hoje tem por missão principal salvaguardar a presença da língua e da cultura portuguesa no mundo multimedia, onde o streaming e a disponibilização de conteúdos em plataformas digitais são fundamentais para que essa presença global seja uma realidade. No espectro político há quem não entenda a importância deste serviço público e há aqueles que são movidos por interesses sectoriais e de influência política. O primeiro obstáculo é a obsessão pelas audiências, que está ligada sobretudo aos que desejam influenciar a informação dos canais do operador público. Por isso inventam mil razões para que o orçamento do serviço público seja consumido em conteúdos passageiros em vez de ser investido em produções que são fundamentais na preservação da memória colectiva. Por isso se privilegiam as transmissões desportivas de futebol em vez da produção de documentários, por isso concursos surgem mais importantes que transmissões de concertos ou de peças de teatro. É certo que estou a exagerar, mas claramente há uma desproporção entre o que é gasto em conteúdos efémeros em vez de produções criativas, ficcionais ou documentais. A RTP vive dos cidadãos, não dos contribuintes – porque somos todos nós que pagamos uma taxa na fatura da electricidade.  Felizmente desde há alguns anos o Orçamento de Estado não é chamado de forma saliente ao funcionamento da operação da RTP. Os canais da RTP são fundamentais para oferecerem uma alternativa aos canais privados, devem ser complementares e não concorrenciais – e do ponto de vista da definição de prioridades e de funcionamento esta é uma pedra de toque da estratégia do serviço público audiovisual. Além disso devem ser uma referência na informação e no jornalismo de investigação, coisas incómodas para os políticos como bem recentemente se viu pelas posições do secretário de estado Galamba. E deve ser uma referência em termos de programação infantil e formativa, na coesão territorial através de uma informação local e regional que seja pilar da programação informativa e não apenas um elemento decorativo, uma referência em termos da presença de artistas e criadores nacionais e como regulador e garante do desenvolvimento sustentável de uma indústria audiovisual privada que permita manter a presença de Portugal no mundo global.

Isto exige redefinir a estratégia e os objectivos de cada canal de rádio e de televisão, desenvolver ainda mais o que já foi feito na digitalização e disponibilização dos arquivos e sobretudo na plataforma RTP Play, criada durante a administração cessante de Gonçalo Reis e que foi um dos mais importantes passos do operador público no sentido da presença digital global. 

Neste processo de revisão do Contrato de Concessão tendo a estar alinhado com as críticas que o Bloco de Esquerda faz ao modelo de funcionamento da governação da RTP, dirigida desde a infeliz decisão de Poiares Maduro por um Conselho Geral Independente a que prefiro chamar Conselho Geral Inútil. Na realidade é uma estrutura opaca, cuja verdadeira independência está cada vez mais por esclarecer, um orgão de designados e cooptados, não fiscalizado e com um histórico de ausência de posições sobre o que de facto deve ser a estratégia do serviço público audiovisual, sobretudo a estratégia futura. É um aparelho de apparatchiks que funciona por reacção e não por antecipação. Em suma, é maioritariamente inútil. Era preferível um modelo emanado do Parlamento, mesmo com todos os riscos que isso comporta no nosso sistema partidário e eleitoral – pelo menos seria mais escrutinável.

Eu entendo que o canal 1 da RTP deve ter uma programação mais acessível e conseguir chegar a mais público que os outros canais públicos; penso que o canal 2  tem sabido com os parcos recursos que possui organizar uma grelha alternativa – e é neste canal 2, hertziano e universal, que se devia conjugar numa distribuição horária equilibrada a programação infantil e a cultural e alternativa – fomentando a produção infantil portuguesa, e o registo do trabalho dos criadores nacionais, assim como a exibição de séries europeias que não passam nas concorrências; e creio que uma RTP3 mais dedicada à informação local e regional e ao desporto amador serviria bem melhor os desígnios do serviço público que a competição com os canais privados nos programas de análise dos grandes jogos de futebol; finalmente, sou de há muito um defensor da fusão dos dois canais internacionais num só. Tudo isto tem paralelo nos canais de rádio, que precisam também de ser repensados. A existência e a estratégia de todos os canais de rádio e de televisão deve ser posta em causa neste momento, clarificando as obrigações de serviço público, garantido a sua exequibilidade, em termos de difusão e a sua adequação ao financiamento existente. Da maneira como está, a proposta do Governo sobre a revisão do contrato de concessão mantém a governação da empresa de forma não escrutinada, não estabelece prioridades estratégicas claras, cria novas obrigações de forma indefinida sem atribuir meios financeiros adicionais.

Mais do que uma revisão do Contrato de Concessão, feita para obedecer a uma agenda própria do Governo, valia a pena abrir novo debate sobre esta matéria, aproveitando trabalhos anteriores e, sobretudo, olhando para o futuro – um futuro onde os canais abertos hertzianos serão cada vez mais minoritários – o que por exemplo põe em questão o recurso ao alargamento dos canais TDT. Mas pelo que vejo não creio que seja este o caminho que vai ser seguido.

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