Raspadinhas: do risco do investimento aos micro investidores de risco

Por Luís Figueiredo, Business Developer Manager da Critical Software

O flagelo das raspadinhas em Portugal foi mencionado pela comunicação social, ao longo do último ano, com uma frequência preocupante. Podia, facilmente, ser uma das palavras do ano. Os números associados ao jogo instantâneo em Portugal, e em especial à raspadinha, são impressionantes: em 2021, “os portugueses gastaram 1,5 mil milhões de euros em raspadinhas”, número que tem aumentado ano após ano. Feitas as contas, em 2021, cada português adulto gastou cerca 143 euros com raspadinhas – considerando que a população adulta em Portugal ronda os 10,5 milhões.

Há, no entanto, um “núcleo duro” de 100 mil portugueses que contribui mais ativamente para os 1,5 mil milhões de euros anuais. Supondo que este grupo joga, em média, uma raspadinha de 2 euros por dia, vemos gastos anuais na ordem dos 730 euros , ou seja, cerca de 61 euros mensais, valores que seriam interessantes para aplicar em alternativa, por exemplo, numa subscrição ou no reforço de um Plano de Poupança Reforma (PPR) ou Poupança Educação (PPE).

Vejamos: em cada 10 apostas em raspadinha, entre 7 a quase 8 representam a perda total do capital, não fosse este um jogo determinado pela sorte. Apostar nas raspadinhas é, portanto, uma atividade lúdica e não uma forma de criação de riqueza. De recordar que, dos 1,5 mil milhões de euros gastos em raspadinhas em 2021, 1,128 mil milhões de euros representam os proveitos diretos do promotor deste jogo. Se metade deste valor fosse investido pelos portugueses em produtos financeiros, mesmo que de risco elevado, certamente estes jogadores estariam a acumular mais riqueza.

Posto isto, seria possível dizermos que, em Portugal, existem 100 mil potenciais micro-investidores de risco, ainda que estes não tenham consciência disso?

Parece-me plausível esta hipótese, mas para esta transição, falta endereçar um conjunto de desafios, tais como a falta de literacia financeira ou a necessidade de tornar as opções de investimento mais simples e atrativas para todos, uma falha do sistema de educação português com demasiados anos. Só assim será possível que os portugueses possam compreender o como e o porquê de fazer a transição, especialmente os jogadores compulsivos mais jovens.

Também os bancos tradicionais e as fintechs poderão contribuir para esta transição. A “joguificação” (tradução livre do inglês Gamification) das soluções digitais de investimento suportadas por mecanismos inteligentes e pré-definidos de investimento poderá ser uma solução.

Além disso, existe agora a possibilidade de criação, ou democratização de acesso, a produtos dinâmicos de investimento, através da utilização de Inteligência Artificial e algoritmos preditivos, que, apoiados por regulamentação apropriada, permitem que mesmo aqueles com menor literacia financeira se tornem investidores de sucesso.

Esta oferta teria, necessariamente, de ser disponibilizada com uma componente lúdica, tipo jogo, que mantenha o investidor motivado e imerso. A criação de apps direcionadas para este fim, semelhantes a tantas outras de apostas desportivas ou de jogos de casino, serve de ponto de partida para uma revolução na forma como o público se relaciona com os produtos de investimento.

A proliferação das apps de apostas em Portugal é a prova de como estas soluções cativam o utilizador, ao mesmo tempo que contribui significativamente para esse sucesso do negócio subjacente. Claro que, por exemplo, o meio desportivo e a relação que o utilizador tem com o desporto influencia bastante o sucesso destas apps, mas inevitavelmente as apostas desportivas são muito mais simples de compreender pelo utilizador do que a compra de títulos ou produtos compostos.

Por fim, dado o perfil de grande parte dos atuais jogadores compulsivos de raspadinhas e das apostas em geral, o segmento destes clientes bancários, implicaria que o banco tivesse à disposição soluções simples e 100% digitais para suportar a relação com os mesmos, à medida que se tornam clientes de soluções de investimento.

Acredito que, com uma abordagem diferente aos produtos de investimento, os bancos poderão abrir uma nova oportunidade, não apenas com a viabilização de uma franja de clientes de baixo rendimento, muitas vezes quase excluídos do sistema bancário, mas também de aumento dos pequenos investidores em Portugal. Aumento esse subjacente ao sucesso de uma solução digital alinhada com os hábitos destes utilizadores de jogos.

A preocupante prevalência das raspadinhas em Portugal ressalta, definitivamente, a necessidade de repensar a relação do público com o dinheiro e o investimento. Os valores astronómicos gastos num jogo determinado pela sorte, como a raspadinha, destacam as oportunidades perdidas de direcionar esses recursos para investimentos que poderiam gerar riqueza real no longo prazo.

A ideia de que podem existir potenciais micro-investidores de risco entre os jogadores compulsivos é intrigante. No entanto, é crucial que nos lembremos que essa mudança requer uma abordagem sensível às necessidades e características do segmento de jogadores compulsivos, exigindo soluções simples e digitais para apoiar a sua transição para produtos de investimento.

Ler Mais