Um conto de Natal…

Por Luís Paulo Salvado, Chairman e CEO da Novabase

Numa Lisboa iluminada pelo Tejo, João mesura deslumbra-se com o seu império de milhões.

O capitalismo é a sua prancha, e ele, um hábil surfista sem compaixão alguma pelos desgraçados que a corrente arrasta. Sedento de sucesso e completamente indiferente às ondas que rebentam em quem vive nas margens da democracia.
Na sua empresa trabalha Quim, um jovem com tão pouca esperança quanto a sua parca saúde. Com a vida brutalizada pela dura realidade, Quim é a voz silenciada dos esquecidos, de todos os que sobrevivem nos cuidados intensivos da actualidade.
Na noite da consoada, João foi visitado por três sombras. A primeira, vestindo-se com as memórias de um Portugal recente, narrou-lhe contos da época da Troika, expondo feridas e cicatrizes de um país em convalescença. Reviveu as mesmas noites frias de muitos e muitos lares despedaçados, onde viu estórias de arrepiar com o desespero a consumir famílias inteiras.
A segunda sombra, o espectro do presente, apresentou-se como um retrato vivo das ruas da cidade, onde um turismo febril escondia uma crescente desilusão popular. Eram muitos os que sofriam sob o peso de cada vez mais impostos e pela ausência de serviços públicos que deveriam ser direitos, não privilégios. E também muitos os que estrebuchavam na maré alta de um progresso invisível. Um progresso que aparecia nos números e nas estatísticas, enquanto afogava os pequenos e os mais frágeis – como Quim e a sua família – numa vaga crescente de desigualdade. A recente demissão do Governo era apenas mais um reflexo da turbulência nas águas da democracia e da justiça.
A terceira sombra, projectou-se como um filme sombrio dos Natais vindouros, onde as luzes de Lisboa tremiam, ténues, num horizonte de incertezas. A aparição revelava-lhe um Portugal fragmentado, uma caricatura dos sonhos de Abril, com os ideais de uma prosperidade partilhada eternamente adiados. A sombra desvendava um país à beira de um qualquer abismo, onde vozes populistas berravam mais alto no vácuo deixado pela decepção e pelo descrédito. Viu-se a si mesmo, perdido num labirinto de escolhas erradas.
Outrora insensível e indiferente, João Mesura mergulhou num mar de reflexões. Chegou a questionar-se se não faria ele próprio parte do problema. E lá cogitou que talvez o capitalismo sem consciência seja uma prancha sem surfista, à deriva das tempestades sociais e de tantos outros imponderáveis.
Até o mais empedernido dos capitalistas pode ser como um conto incompleto à espera de um final de esperança…
Festas Felizes!

Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 213 de Dezembro de 2023