Populismo: a doença sénior da democracia

Por António Ramalho, Gestor

Quando Lenine escreveu o seu manifesto “Esquerdismo como doença infantil do Comunismo” e tratou de o distribuir por todos os congressistas da II Internacional, tinha a consciência que a “institucionalização” da Revolução bolchvique, então chegada ao poder na Rússia, obrigava à denuncia dos excessos esquerdistas dos que recusavam qualquer compromisso e não valorizavam o esforço de caminhos vários para o mesmo propósito: a vitória da revolução proletária.

Lenine percebeu que o pragmatismo impunha limites à cartilha ideológica. Chamou-lhe doença infantil porque estávamos no princípio da longa caminhada para a sociedade comunista. Lenine escreveu essas páginas há mais de 100 anos e estava longe de antecipar não só o colapso da ideologia em que acreditava nem mesmo a tragédia que implicou a sua concretização tentativa. Mas tinha razão em antecipar que todos os modelos ideológicos sofrem de doenças, ora infantis, ora seniores que podem perturbar a sua utilidade.

É isso que se passa com o populismo na sua relação com a democracia. Sendo a democracia um modelo testado e retestado temos de concluir que só pode ser uma doença sénior que a democracia já vai perdendo a sua inocência juvenil.

Vejamos: A democracia é um estranho sistema de organização do poder na sociedade em que o o modelo de escolha é baseado num puro critério quantitativo. Quem tem mais votos é quem Governa. As propostas que obtêm mais votos são aprovadas. A simplicidade do sistema e a inexistência de um sistema melhor, tornou a democracia representativa o “menos mau” do nosso sistema de “governance” social.

Claro que o sistema é mais complexo na sua configuração, através dos subsistemas eleitorais, e dos subsistemas de representação política, mas no fundo, o sistema baseia-se na simplicidade quantitativa. E não vale a pena especular sobre as suas vantagens, a despeito de ser uma discussão interessante, porque este é o sistema adoptado. E isso tornou-se quase um dogma mais do que um axioma na vida moderna.

A simplicidade do Sistema impõe no entanto uma iniciativa para que possa funcionar. Alguém se tem de candidatar para ser eleito. Alguma proposta tem de ser apresentada para ser aprovada. Essa iniciativa a que chamaremos “impulso democrático” nunca foi suficientemente valorizado como valor da democracia. E, curiosamente, foi esse impulso que deu utilidade ao próprio sistema.

Nos primórdios da moderna democracia ocidental este impulso foi enquadrado no que denominamos “ideologias”. Conjuntos mais ou menos homogéneos de ideias políticas que eram postas à discussão, à eleição e à votação da maioria. Os partidos políticos não foram mais que grupos de pessoas organizadas para propor ideologias e agentes da sua implementação perante o sistema de escolha quantitativa.

Em linguagem económica, significa que a democracia funciona com origem na oferta. A democracia impõe o “impulso democrático” que cabe às elites apresentar e propor para se sujeitarem à escolha, eleição e votação quantitativa dos cidadãos. Se o nosso impulso democrático, a nossa ideologia, não merecesse a confiança da maioria, pois bem, voltaríamos no prazo convencionado a propô-la como solução. Um dia teríamos razão ou talvez não.

Assim nasceu, cresceu e atingiu a maturidade o nosso sistema democrático ocidental.

Mas o desenvolvimento progressivo dos meios de comunicação, dos intermediários de opinião e métodos de auscultação dos cidadãos foi progressivamente transformando o sistema de forma sub-reptícia.

A pouco e pouco, as elites foram tentando perceber o que os cidadãos queriam e dessa forma moldando o seu “impulso democrático”. A questão não era já de propor e submeter ideias coerentes à escolha quantitativa, a questão era antecipar as ideias que moldariam o “impulso democrático” para obter o favor da escolha quantitativa.

A democracia começou a perder a sua veracidade original para se tornar num modelo de adaptar propostas ao sabor da maioria. A ideologia foi-se perdendo. A democracia começou a transformar-se numa solução dominada pela procura e já não pela oferta.

Claro que as elites perceberam que alguns assuntos tinham que fugir ao domínio da procura para se manterem na reserva da competência da oferta. Desde sempre a justiça que foi órgão de soberania independente da legitimidade quantitativa. Mas também todas as funções de regulação que o poder democrático colocou em órgãos independentes e inamovíveis para fugirem ao poder da procura.

Todos convivemos com esta evolução com a máxima naturalidade. Até parecia bem que as propostas, “os impulsos democráticos”, estivessem longe dos arquétipos ideológicos e partissem de um pragmatismo evidente. Propor o que os cidadãos querem não parece trazer nenhum risco para a democracia. Até parecia reforçá-la.

Mas não reforçava. A demissão das elites em insistir na democracia da oferta para se passarem a apresentar assentes na democracia da procura foi o pasto para a origem do risco do facilitismo primeiro e do populismo mais recentemente.

Numa primeira fase tivemos partidos pouco corajosos a gastar o que não tinham, a prometer o que não cumprem e a evitar todas as questões difíceis de explicar. É o tempo dos salários baixos para os políticos alienando os melhores talentos, o tempo da devassa das vidas privadas em nome da transparência, o tempo da concordância com todas as reivindicações, com todas as exigências. Era o tempo do populismo soft que alguns até quiseram enquadrar filosoficamente.

Depois, surgiram os novos partidos à esquerda e à direita, acenando com causas e totalmente desinteressados das exigências da governação, mas totalmente focados em perceber o que os cidadãos pensam agora, para lhes prometer isso mesmo. Esses partidos em Portugal já representam mais de um quarto dos votos e tendem a dominar nas propostas. São dominantes nas redes sociais.

Claro que o Populismo não é antidemocrático necessariamente. Essa crítica é, aliás, bacoca quer à direita quer à esquerda. É, no entanto, a subversão da democracia que nós conhecemos. Não se baseia no modelo ideológico da oferta, baseia-se na compreensão fácil e imediata da procura. Não se coloca perante o julgamento do cidadão, torna-se fiel interprete do cliente. Não é o velho “impulso democrático” das elites é a aceitação acrítica das redes sociais.

E o populismo soft que muitos defenderam é hoje um populismo hard difícil de conter. E como a democracia não é jovem, essa doença não é infantil é uma doença sénior.

Claro que as doenças têm geralmente tratamento. E neste caso passa pela criação de condições financeiras e de prestígio para atrair para a política o talento e a competência. Passa por voltar a recriar propostas credíveis, por vezes impopulares, mas adequadamente explicadas. Passa por assumir um conjunto homogéneo de ideias adaptadas aos tempos presentes com visão de futuro que dá pelo nome de ideologia. Enfim, passa por retomar a iniciativa da oferta por reassumir o peso do “impulso democrático”, a responsabilidade das elites.

Mas atenção. As doenças na velhice são sempre mais perigosas e potencialmente letais. Esperemos que cada um de nós avalie a sua responsabilidade neste novo tempo. Porque a defesa do “impulso democrático” é agora mais complexa, mais difícil e mais exigente. E no fim… apenas nos garante o acesso à escolha quantitativa. Esse será sempre o risco e o mérito da Democracia.

Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 216 de Março de 2024

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