Híbrido não. Individualismo corporativo, sim!

Por Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati

O que vou dizer não é “politicamente correcto” mas é o que penso: não acredito no trabalho híbrido como modelo e até o acho como um modelo “cínico” para o qual as organizações foram “empurradas” pela pandemia. Que agora têm que manter para não serem “démodé”, porque os colaboradores assim o pretendem e no final porque as organizações poupam um “monte de dinheiro” com isso. Só que ainda não tiveram tempo de entender que o que poupam não compensa o que perdem. Por outro lado, assumir um trabalho híbrido agora (ou “work from anywhere” como pomposamente chamamos) significa que isso não acontecia antes. E digo isto porque eu acredito que as organizações devem ser justas, ter regras e objectivos comuns mas respeitar aquilo que chamo de “individualismo corporativo”. Ou seja se algum colaborador precisar de se ausentar por qualquer motivo justificável, que pretenda trabalhar em casa porque é mais produtivo (durante um período), começar a trabalhar em part time, fazer uma “paragem” ou tirar férias fora do período normal; desde que tenha um bom motivo e não prejudique a mesma, a organização deve adaptar-se. Mas já defendo esta ideia de que cada indivíduo tem necessidades e soluções diferentes há mais de 20 anos. Portanto quando ouço falar de novos modelos de trabalho, acho algo cínico pois isso significa que não o faziam antes. A flexibilização e responsabilização dos colaboradores já não era uma novidade em 2020. Todos falávamos de job sharing, gestão de projecto, home office, part time, gestão por projectos e objectivos, semana de 4 dias. Mas não de uma forma transversal mas individual que beneficie o indivíduo e a corporação ou organização. E só possível em algumas funções (claro), modelos de negócio e colaboradores auto-motivados e responsáveis. Infelizmente a nossa legislação laboral não ajuda a este individualismo que beneficia os colaboradores, mas adiante…
Actualmente voltamos a desconsiderar o indivíduo pois ao criar regras transversais de trabalho remoto, não colocamos as prioridades dos desejos e vontades “fit one to one” de cada um. Voltamos a massificar os comportamentos organizacionais. Podemos estar a obrigar alguém a enfrentar o isolamento alguns dias por semana quando este (a) não quer, pois os escritórios redimensionaram-se e deixaram de ter espaço para todos. Até os lugares de estacionamento foram (ou serão reduzidos).
O Dr. Robert J. Waldinger, de Harvard, afirma “que nossas relações e conexões sociais são um dos fatores mais importantes para a nossa saúde e felicidade.“ e isso não se consegue num ecrã de computador. 

Recordemos que com o home office em 2020, a quantidade de trabalhadores com stress e ansiedade agravou-se. De acordo com pesquisa da Oracle/Workplace Intelligence com 12 mil funcionários de 11 países, as pessoas nunca estiveram tão estressadas e ansiosas. Talvez pelo medo da pandemia e das suas consequências, mas certamente pelo isolamento forçado que esta gerou.
Não podemos esquecer que mais de 35% do tempo dos nossos dias é passado a trabalhar, nalguns casos por mais de 40 anos. As relações sociais referem-se ao relacionamento entre dois ou mais indivíduos no interior de um grupo social. Ora as interações sociais, por sua vez, constituem a base das relações sociais. E estas constroem-se, em casa, na escola, no trabalho, nos eventos da nossa vida privada. O conhecido Max Weber, que para mim ainda está bastante actual, separa as relações sociais em 2 tipos : as Relações Sociais Comunitárias que são de teor afetivo e estão baseadas nos sentimentos. E as Relações Sociais Associativas, de teor objetivo, baseadas na razão e na união de interesses. No trabalho as segundas são preponderantes mas as primeiras também são uma realidade. E não se constroem à frente de um ecrã de computador ou num encontro de um dia por semana no escritório.
Bem sei que se perguntarmos aos colaboradores, como aconteceu com uma pesquisa global feita pela Microsoft, 58% dos trabalhadores desejam atuar nesse modelo remoto ainda em 2022, que o modelo estimula uma cultura positiva em 46% dos participantes, traz benefícios de saúde mental e bem-estar em 42% dos respondentes e estimula um senso de propósito em 40%. Embora não entenda como, não me surpreendeu pois é muito mais confortável trabalhar em casa, não enfrentar o trânsito matinal, definir as rotinas e horários de acordo com as nossas prioridades… e aqui não estou a chamar “preguiçosos” ou “malandros” a quem assim respondeu. Certamente o fez de forma consciente e “accountable”. Mas só gostou deste novo modelo porque o individualismo corporativo não existia nas suas organizações. O individualismo pode permanecer dentro da sociedade e das organizações que tenham o indivíduo como valor básico seguindo regras comuns corporativas, tendo os valores como a “.Trustability” / “accountability” / RespectAbility como modelo, focadas nos objectivos comuns da organização em conjunto com os seus individuais. Porque é possível conciliar os interesses individuais com os colectivos e não foi a pandemia que nos ensinou isso agora.
Mas lembrem-se que as mudanças acarretam sempre consequências “iceberg”, mais práticas e que acontecerão mais tarde. O advento da redução da dimensão dos escritórios já é uma realidade, a retirada das viaturas de companhia como “fringe benefits” acontecerá pois passam a ser desnecessárias, o risco das organizações criarem um “big brother” digital para controlar os colaboradores, a consciencialização de que algumas funções afinal são desnecessárias, a automação de processos levando ao downsizing. Do lado dos colaboradores algo que já acontece, como o “desligar” de forma “discreta” naquelas reuniões infindáveis com mais de 100 pessoas em videoconferência que apenas servem para esvaziarmos o e-mail. Um estudo muito bom, o 365 da Microsoft já demonstrou que mais que 25 minutos de videoconferências aumentam o cansaço e provocam uma quebra das nossas ondas cerebrais “gamma” – gestão da informação e integração dos vários sentidos – e “beta” – concentração e ansiedade…
O mundo remoto invadiu a nossa vida e ainda não sabemos lidar com ele, nem temos regras claras definida. A qualquer momento recebemos uma mensagem no “teams” ou “skips” a pedir uma reunião, marcamos VCs atrás de VCs, sem paragens, que são fundamentais segundo o mesmo estudo da Microsoft.
E perdemos mais, também perdemos momentos que fomentam um ambiente colaborativo e objectivos comuns; promovem a comunicação transparente e ao vivo; estimulam um ambiente de inovação permanente que não é uma actividade solitária; situações de gestão de projectos que permitem identificar talentos para promoções: construir relações sociais; garantir que os colaboradores estão empenhados no propósito e missão da organização; sentir o “smell of the place” da organização”; garantir o sucesso do “on boarding” dos novos colaboradores e a sua manutenção. Tudo isto se perde pois a organização ainda não descobriu que cada indivíduo é diferente um do outro e dos 4 P’s das organizações ( Produtos, Processos, Performance e Pessoas) o último – Pessoas- é o primeiro e mais importante. Um líder deve tratar cada colaborador com um sentido de individualismo sem esquecer a missão, propósito e regras corporativas da organização, optimizando o individualismo corporativo que devia já existir antes da pandemia! Por isso não gosto, nem defendo modelos híbridos de trabalho!!!