De escrutínio a devassa!

Opinião de Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati

A liberdade de escrutinarmos os políticos, os membros da administração pública, das forças de segurança (e outros) é um dever de civismo para proteção “da coisa pública”. Mas o limite entre “escrutínio” e “devassa” tornou-se muito ténue. Precisamente por falta de civismo. O processo de exame minucioso é um dever, mas escrutínio, na sua origem etimológica, advém de várias palavras, mas também da palavra “de scrutari”, que significa: “aqueles que vasculham pilhas de lixo na esperança de encontrar algo de valor”. E aqui entramos naquilo que considero “devassa”. Sendo este até um direito constitucional, para proteger o bem jurídico – «reserva da intimidade da vida privada», nos termos do artigo 26.º da Constituição e que foi replicado no artigo 192.º do Código Penal como crime. O crime é o de “devassa da vida privada”. Mas o castigo é leve, com um máximo de pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias. E o único crime de devassa que é público (ou seja, a investigação não depende da vontade e queixa dos particulares — podendo ser instaurado procedimento criminal pelo Ministério Público) é o de devassa por meio de informática. Não se trata de um crime menor, mas lá que o parece, parece!

Temos muitos exemplos de acusação por este crime, nas suas várias formas. O Ministério Público acusou há alguns anos, o jornalista José António Saraiva de devassa da vida privada, na forma continuada, pela publicação do livro “Eu e os políticos”. Segundo a PGR, este narrou factos relativos à vida privada dos queixosos, que não se revestiam de interesse histórico ou público. E aqui se pode confundir o escrutínio (notícia de interesse público) com devassa da vida privada (crime). Devido aos direitos individuais e coletivos também constitucionalmente expressos, da “liberdade de expressão, informação e de imprensa”. Nestes direitos, um indivíduo pode ter acesso, dispor e publicar informações ou notícias, sem intervenção ou regulação do estado, que sejam de interesse manifestamente público. O oposto é chamado de censura, representado pelo célebre mas reprovável “lápis azul” do regime de Salazar. A sua existência é um pilar fundamental e garante do regime democrático. Mas também, se mal utilizado, uma ameaça ao mesmo. Porque, por vezes, também se confunde o “limite” do interesse público e histórico, com a “fronteira” do interesse público e histórico”. Limite é algo preciso e definido. Fronteira é algo mais lato e representa uma superfície mais ampla e extensa. E esta utilização da fronteira da liberdade de expressão e informação é perigosa, pois conflitua com outros direitos constitucionais. Não pode ser ilimitada nem sequer lata. Deve ser clara e o interesse em expressar uma opinião ou relatar um facto e informar, deve ser objetivo e manifestamente público.

A utilização da “fronteira”, na liberdade de informar, prejudica muito a democracia, pois afasta o escrutínio das “fake news”, promove a desinformação e populismo, invade a vida privada dos cidadãos, cria uma sociedade sem civismo, desrespeita a profissão dos jornalistas isentos e profissionais, cria verdadeiras oligarquias que controlam a informação; no limite afasta os melhores cidadãos da vida pública (nomeadamente da vida política). Ser escrutinado e exemplar para a sociedade deve ser equilibrado e limitado pelo dever de sigilo e confidencialidade em relação à vida privada dos cidadãos que abraçam a missão da vida pública. Formalmente seria como o “segredo de justiça” mas na realidade é o oposto deste, pois é totalmente desrespeitado sem nenhuma consequência para ninguém. Basta alguém ser considerado arguido, um direito que deveria beneficiar os mesmos, para passar a ser “criminoso”, pois toda a população vai saber e o nome (do cidadão que ainda não foi sequer acusado ou julgado) “já é arrastado na lama”. Esta violação básica dos direitos fundamentais associado a uma baixa literacia dos cidadãos, cria realidades distorcidas. Como exemplo, Portugal caiu quatro lugares no ranking das democracias liberais, passando do 22.o lugar em 2022 para o 26.o lugar em 2023. Este lugar surge no último relatório da democracia do “Variety of Democracies”, referindo no entanto que Portugal mantém uma posição confortável em 179 países, mas a cair. As principais áreas de declínio em Portugal centram-se nos media, no sistema de justiça, assim como na perda de qualidade da administração pública. Consequências geradas, a par da falta de investimento público, da baixa literacia (pensa-se que cerca de 100.000 Portugueses se possam ter enganado no voto de AD para ADN…), dos interesses comerciais e mediático dos proprietários dos media, dos baixos salários dos jornalistas, mas também pelo que tenho vindo aqui a falar. É mais fácil vender um jornal ou uma notícia sobre o cancro da princesa de Gales do que uma notícia sobre o programa do governo. Portanto os media (não considero aqui todos pois existem alguns meios, diretores de informação e jornalistas com elevadíssima qualidade) têm que seguir a “política do pão e circo”. Assim como as redes sociais permitem a todos, inclusive alguns “ignorantes” opinarem sobre tudo. Esta prática romana foi iniciada pelo imperador romano Otávio Augusto que consistia em estabelecer meios para agradar à população plebeia, mantendo-a alienada e satisfeita. O mesmo na vida pública, nomeadamente na política em que quase só os “boys” querem exercer essa função que deixou de ser atrativa, assim como a da administração pública. Vemos deputados municipais a serem em paralelo assessores parlamentares e membros das juventudes partidárias, sem nenhuma experiência de vida para além desta. Esta falta de diversidade gera falta de qualidade. E somos nós que a pagamos. Devíamos ser mais exigentes. Vale a pena pensar nisto!