Cegos, surdos e mudos

Por Manuel Lopes da Costa, Empresário

O recente episódio do Zmar é uma trapalhada tal que nos devia seriamente envergonhar: envergonhar a todos os níveis e envergonhar a todos.

Primeiro andámos completamente cegos, sem nunca nos termos apercebido que as populações das terras do litoral alentejano tinham, paulatinamente, vindo a alterar a sua composição étnica. Só quem andou cego, ou muito distraído, é que nunca se deu conta que o alentejano de capote e cajado tinha dado lugar a uma população de etnia asiática. Toda a gente achou normal. Havia cada vez mais trabalhadores oriundos de outras paragens a passear pelas ruas das vilas e cidades alentejanas ao fim do dia e ao fim-de-semana, com traços faciais bem distintos do tradicional pescador e pastor, mas ninguém se deu conta. As mercearias trataram logo de começar a vender outros produtos, bem mais exóticos, e ninguém se espantou – mesmo sabendo que a sopa de cação nunca levou caril e que o ensopado de borrego nunca levou soja. Enfim, todos assistiram a uma transformação cultural e populacional da região sem nunca se interrogarem, sem nunca terem visto nada. Era tudo normal. Ninguém perguntou quem eram?  De onde vinham? Como estavam ali a viver? Em que condições? Se precisavam de ajuda? Cegos que estavam, lá os foram tolerando na vila, nos cafés, nos mercados e, eles, coitados, que são humildes, gentis e bem disciplinados — embora algumas vezes olhados com algum desdém e temor — lá se foram adaptando, respeitando as gentes e regras locais. Não há registo de incidentes de maior. Não se ouviu falar de roubos, de violações, de atentados graves à ordem pública e, deste modo, fomos todos cegamente coniventes com a indiferença perante o que estava a acontecer. TODOS. Os que lá viviam e os muitos que lá gozavam férias e que, de passagem, os viam, mas a quem, cegamente, a presença destas pessoas não suscitava dúvidas: “era a malta dos frutos vermelhos”. Somos todos responsáveis. Desde o senhor Presidente da Câmara que, cego, não viu que a população do Concelho começou a ter outra fisionomia, passando pelos responsáveis pelas unidades agrícolas que se serviram desta mão de obra e que pagaram a intermediários sem se preocuparem com as condições de vida, de higiene e de subsistência destes trabalhadores. A menos que tenham todos pensado que, com a democratização das viagens ao oriente da década de 1990, as mulheres alentejanas da região, durante uma viagem exótica à Tailândia, ao Laos, ao Nepal, à Índia ou a países vizinhos tivessem, no entusiasmo das suas férias, todas engravidado e, consequentemente, dado à luz bebés alentejanos de gema com uma fisionomia diferente, era impossível não ver que algo estava a acontecer. Fizeram todos vista grossa enquanto beneficiavam economicamente deste trabalho quase “escravo”, como se o simples facto de pagar a empresas de contratação de mão-de-obra ilibasse moralmente de tentar perceber que havia seres humanos a trabalhar nas nossas unidades agrícolas com salários muito abaixo do salário mínimo e a viverem amontoados em quartos, dividindo instalações sanitárias e cozinhas totalmente desadequadas.

Onde andou a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) durante este tempo todo? A invadir, verificar e multar os escritórios de serviços da capital que, por acaso, tinham dois ou três funcionários a trabalhar fisicamente em instalações com mais de 2000 m2, reforçando assim a lei do teletrabalho obrigatório? Pois, é claro que a fiscalizar onde mais era necessário é que não andou. Andou cega.

Além de cegos andamos agora também surdos de tanto beber informação enviesada que nos é dada e sem querer ouvir outras fontes, sem querer conhecer os pormenores. No caso Zmar fomos coletivamente levados a acreditar que o governo tinha requisitado casas de privados para alojar trabalhadores infetados das instalações agrícolas das redondezas. Nada menos verdadeiro. Mas, aqui, uma vez mais, alguns jornalistas esqueceram-se da regra de ouro que deve nortear a sua atividade: um jornalista tem por obrigação relatar a notícia e nunca criar a notícia. E assim, ajudados pela imprensa surda e pouco séria — a quem só interessa relatar os escândalos em busca de audiências, em vez de investigar e ouvir todos os intervenientes antes de noticiar um acontecimento — fomos levados à condenação fácil de algo que, sinceramente, quando analisado ao pormenor, não me parece que tenha a gravidade que foi alvitrada. Desde “Cenário de terror.” Advogados do Zmar acusam Governo de «má-fé» em «ocupação desproporcional»” (in tsf.pt de 6/05/2021) ao “CDS pede ao Governo para ‘revogar de imediato’ requisição do Zmar” (in noticiasaominuto.com de 2/05/2021) passando por “Chega ataca Governo contra ‘inqualificável’ requisição civil do Zmar“ (in dn.pt de 1/05/2021) todos se apressaram em emitir uma opinião rápida sobre factos que não tinham sido devidamente analisados. Vamos a factos: o Zmar é composto por habitações privadas e por habitações que pertencem ao complexo turístico “Zmar Eco Experience”. Ora, acontece que este complexo turístico faliu. Está insolvente. O maior credor é o Estado português e o atual responsável máximo pelo complexo é o seu administrador de insolvência. Então, perante uma situação urgente que visava dar condições e um mínimo de humanidade a um conjunto de trabalhadores agrícolas que viviam amontoados em quartos em situações deploráveis, e tendo o Estado, enquanto maior credor, a possibilidade de usufruir de casas desocupadas num perímetro relativamente perto, decidiu esse mesmo Estado falar com o administrador de insolvência no sentido de, provisoriamente, usar estas habitações vazias e disponíveis para realojar os trabalhadores não infetados. Algo a que o administrador de insolvência anuiu embora tenha posteriormente alegado “«má fé» do Governo, com quem tinha estado em conversações na véspera, e que acabou por agir de forma diferente em relação ao que tinha dito. «Estava a ser admitida a celebração de um acordo», garantiu Pedro Pidwell, administrador da massa insolvente do complexo” (in expresso.pt de 7/05/2021). Por muito socialista que seja este governo, por muito que seja apoiado pelo Partido Comunista e pela extrema-esquerda, a verdade é que nunca foi sua intenção requisitar as casas dos privados, nem alojar no Zmar os trabalhadores infetados. No entanto, foi isso que se quis fazer passar e que, infelizmente, passou para a opinião pública.

E porquê? Porquê toda esta polémica? Porque, lamentavelmente, trata-se de um caso claro de xenofobia, de falta de solidariedade e, atrevo-me mesmo a dizer, de falta de humanidade. O que aconteceu na realidade, sejamos honestos, é que os proprietários das casas privadas não quiseram que nas casas, embora longínquas mas no mesmo complexo que as suas e que pertencem à unidade hoteleira, estivessem hospedados estes trabalhadores estrangeiros de tez mais escura e feições diferentes das deles. “Na prática, os trabalhadores agrícolas vão estar em isolamento, e a grande distância dos proprietários de casas que estão no Zmar.” (in expresso.pt de 07/05/2021). Se fossem eslavas, loiras, altas e lindas já não haveria certamente problema nenhum. Sim, porque enquanto a unidade hoteleira funcionou, estes mesmos proprietários que montaram todo este “circo”, conviveram perfeitamente e lado a lado com casas que eram ocupadas semanalmente por forasteiros, nacionais ou estrangeiros, sem nunca se lhes ter ouvido o menor protesto. Ou seja, turistas loiros surfistas, sim! Trabalhadores agrícolas mais escuros, não! “«Vamos mostrar que não queremos que entrem”», protestam proprietários e trabalhadores do Zmar” (in publico.pt de 5/05/2021).
Sinceramente deviam era ter vergonha. TODOS. Todos os que se pronunciaram e deram palco a esta postura ignóbil. Esqueceram-se que, acima de tudo, de qualquer mesquinhez e egoísmo próprio, estava-se a tentar ajudar seres humanos, pessoas que, tal como nós, merecem ser respeitadas. Portugal mostrou o seu pior, mostrou que existem, infelizmente, portugueses pouco recetivos em ajudar o próximo. Nós não éramos assim, nunca fomos assim e só espero que não venhamos a ser assim, xenófobos.

Também, verdade seja dita, era completamente desnecessário realojar os pobres trabalhadores às quatro da manhã, entrando na propriedade de noite e dando azo à maior das especulações sobre o que estava a acontecer. “Odemira. Cerca de 50 imigrantes realojados na madrugada no Zmar e na Pousada da Juventude. Aparato policial criticado.” (in Observador.pt de 6/5/2021). Mas, quem é que no MAI se lembrou desta aberração? Quem é que planeou uma operação destas? Quem é que é responsável por ir buscar, literalmente à cama, seres humanos que trabalharam o dia todo, e que estavam a usufruir legitimamente do seu direito ao descanso, às quatro da manhã, sem pré-aviso, para os obrigar a empacotar as coisas na hora e os meterem num autocarro para os despejarem uma hora depois no Zmar? Do susto destas pessoas, sendo que a maioria não sabia o que se estava a passar, ninguém fala, com isso ninguém se preocupa. A responsabilidade máxima desta situação é óbvia: é do senhor Ministro da Administração Interna. Mas falar do senhor Ministro Eduardo Cabrita não vale a pena, é como “bater no ceguinho”. Toda a gente já falou, da esquerda à direita. Só que ele está surdo e não consegue nem ouvir as críticas que lhe são dirigidas, nem perceber que é um embaraço para o seu governo, para o seu Primeiro-Ministro. Mas algo tem que ser feito porque, sinceramente, todas as semanas o Ministro da Administração Interna nos brinda com mais uma pérola que em nada dignifica as instituições que tutela e que nos devem merecer, e merecem, o maior respeito. Colocar uma cerca sanitária extremamente sofisticada e onerosa no Concelho de Odemira e fazer vista grossa aos festejos futebolísticos na capital, não me parece de todo aceitável nem equitativo.

Finalmente mudos. Mudos porque são poucos os que têm a coragem de denunciar o trabalho escravo destes trabalhadores agrícolas — que não existe só no Alentejo — e os muitos outros casos semelhantes como os que, diariamente, trabalham na construção civil, na hotelaria, na restauração e em outras atividades económicas e que vivem em condições muito abaixo do aceitável. Esta situação é em tudo comparável à dos portugueses emigrados em França nos longínquos anos 1950, 1960 e 1970 que viviam em bidonvilles em condições em tudo semelhantes a estas e que então muito nos chocou. “Os Bidonville, o lado da miséria portuguesa em França” (in rr.sapo.pt). Tal como França precisou dos portugueses nós também precisamos destes imigrantes. São muito bem-vindos. Temos é que os receber condignamente.

Mudos, não expondo, nem debatendo, seriamente uma realidade preocupante que é o facto, segundo o Banco Mundial, do PIB per capita em Portugal ainda não ter conseguido recuperar o valor de 2008. Esse mesmo PIB per capita que teima em estar abaixo da média da União Europeia e muito abaixo da média dos países da zona euro (in Pordata.pt). Estamos mais pobres, cada vez mais pobres, mais endividados e mais dependentes do Estado. Mudos, porque o nosso salário mínimo, mesmo revisto em alta, continua baixo. Mas, mais preocupante do que este ser baixo, é que há cada vez mais portugueses e estrangeiros a trabalhar em Portugal que ganham esse salário mínimo. “A percentagem de pessoas a trabalhar nas empresas na indústria, comércio ou noutros serviços que recebe o ordenado mínimo mensal em 2008 era 4% e em 2018, 22,1%” (in Pordata.pt). Ou seja, um em cada cinco trabalhadores. Temos mais de 700.000 profissionais a ganhar 665 Euros mensais. E ficamos coletivamente mudos enquanto empobrecemos (e isso que estes dados ainda não refletem a pandemia que nos assolou).

Não admira, pois, que as grandes empresas estrangeiras continuem a querer instalar os seus serviços de operações, os seus centros de chamadas telefónicas, ou todo o tipo de centros de trabalho administrativo de apoio necessário, mas de baixo valor acrescentado, no nosso país. Nós cegos, surdos e mudos somos, efetivamente, o povo ideal para trabalhar a baixo custo. Não gostamos, mas aceitamos. Um pouco como o que acontece com os imigrantes que trabalham nas nossas unidades agrícolas. Afinal, somos todos humanos.

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