A emergência normalizada e o advento dos pequenos poderes…

A opinião de Manuel Lopes da Costa, Empresário

Senhor Presidente da República, permita-me que lhe recorde o significado da palavra emergência. Sendo o Senhor Professor um homem de letras, tal não deveria ser preciso, mas as suas recentes promulgações assim me obrigam a fazê-lo.

De acordo com o dicionário online da Porto Editora, emergência significa:

  1. ato ou efeito de emergir, de assomar ou vir à superfície
  2. aparecimento; eclosão; surgimento
  3. acontecimento inesperado ou de gravidade excecional que requer (re)ação imediata ou urgente
  4. situação ou momento crítico

Significa, portanto, algo de novo, de extraordinário. Ora, há mais de um ano que vivemos em sucessivos estados de emergência. Já vamos no 14º. Banalizámos de tal forma algo que deveria ser absolutamente excecional que já ninguém liga nenhuma. O que é grave. A teoria do sapinho aquecido em água morna à qual se vai subindo a temperatura sem que ele se aperceba até ficar cozido, aplica-se na perfeição à população desta nação valente. Nada justifica o abuso continuado de um instrumento só para reforçar medidas que, embora discutíveis, podemos até aceitar. Se faltam instrumentos, criem-se esses instrumentos, mas não usem e abusem dos instrumentos que deveriam ser de uma excecionalidade absoluta gerando assim na população um sentimento de normalidade face à privação total de liberdades e garantias, algo que se tem repetidamente vindo a verificar. Tenho a certeza que essa não era a intenção, nem o espírito, dos legisladores e dos constitucionalistas quando redigiram a atual Lei n.º 44/86.

Confinados de janeiro à Páscoa é algo inaceitável, brutal e violento. E, embora alguns como eu já o tivessem previsto — e anunciado publicamente — a verdade é que o Governo e o Senhor Presidente nos foram apresentando o facto em sucessivas tranches de 15 dias de forma a nos criarem habituação. E criaram. Nada pior do que viver num estado com características de ditadura disfarçado de democracia. Tal como na Alemanha dos anos 30, tal como na África do Sul do apartheid, onde o uso de aussweis e/ou passaportes era obrigatório para nos movimentarmos fora das zonas de residência e guetos, também nós nos fomos habituando a ter que ter à mão, sob pena de uma multa pesada, um papel justificativo da nossa deslocação para, diligentemente, apresentar às autoridades. Se esta situação ocorresse durante o mandato de um Governo de direita certamente já teríamos tido manifestações de rua, gritos pela liberdade e grande instabilidade social.

Da leitura da Lei n.º 44/86, depreende-se como descrito em www.parlamento.pt  que:

Na declaração do estado de emergência apenas pode ser determinada a suspensão parcial do exercício de direitos, liberdades e garantias, prevendo-se, se necessário, o reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e o apoio às mesmas por parte das Forças Armadas. A suspensão ou a restrição de direitos, liberdades e garantias devem limitar-se, nomeadamente, quanto à sua extensão, à sua duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade.

Em nenhum caso, pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.”

Isto é o que está escrito. No entanto, a interpretação atual deste texto leva à imposição por parte do Governo de um determinado número de medidas extremamente castradoras das nossas liberdades e garantias democráticas.

Às autoridades foi-lhes dado poder recriminatório, diria mais: foram incitadas pelo Governo a serem implacáveis e intransigentes e, assim, em vez de serem o que deveriam ser, pedagógicas e afáveis para com os mais desfavorecidos, tornaram-se temidas e desagradáveis. Armadas com esse pequeno poder, veio infelizmente ao de cima a síndroma do “porteiro de discoteca”. Trata-se de algo que, infelizmente, vive em cada um nós e que consiste em, durante uma noite, ter o pequeno poder de barrar a entrada no estabelecimento, de forma arbitrária, a todos, sejam eles Presidente da República, Primeiro-ministro ou simples mortais, cabendo-lhe apenas o discernimento de deixar passar os amiguinhos.

Só assim se justificam situações absolutamente caricatas como “Homem multado ao comer bolachas dentro do carro na Lousã” (in tvi.iol.pt/doisas10) ou “Homem multado enquanto come sandes no carro em Torres Novas” (in cmjornal.pt 27/01/2021) ou ainda, pasme-se, o caso de alguém que “vai recorrer na multa de 200 euros por comer gomas junto a uma máquina de ‘vending’ na Lousã.” (in jn.pt de 27/03/2021) contribuindo assim com mais um processo para o já pouco atafulhado funcionamento dos nossos tribunais.

A situação é tão ridícula que daria vontade de rir, não fosse o facto muito sério e triste da PSP e da GNR andarem a investir o seu precioso tempo a correr atrás de cidadãos indefesos em vez de se ocuparem em realmente patrulharem as ruas e prenderem delinquentes.

Mas, é compreensível: um delinquente pode ripostar e é perigoso enquanto que multar em 200€ “uma adolescente que se desloca no metro com um skate na mão” ou “Reformada com 80 anos foi multada pela PSP por ‘tomar pequeno-almoço nas imediações de um café’ em Paço de Arcos” (in poligrafo.sapo.pt de 28/03/2021). É simples e é lucrativo — recordo que as multas são pagas obrigatoriamente na hora “Polícia irá privilegiar ‘cobrança imediata de coimas’.” in publico.pt — e trata-se também certamente de algo que fica bem na folha de serviço enquanto cumprimento rigoroso das orientações emanadas pelo MAI. Tal é o empenho que até estão de parabéns: “Desde o passado dia 22 de janeiro que a PSP criou as chamadas ‘Equipas-Covid’, especialmente para fazer a fiscalização das regras impostas pela Direção-Geral de Saúde” que têm tido uma performance notável: “Brigadas covid da PSP: 810 pessoas multadas em 48 horas” (in dn.pt 7/02/2021). Ou seja, como já eram poucos para cumprirem as missões que lhes foram confiadas — a PSP sempre se queixou de falta de efetivos — não tendo havido recrutamento, só podemos imaginar quantos poucos ficaram nas missões anteriores e quantos muitos migrarão para as novas brigadas COVID cheios de motivação e altamente empenhados em realizar um bom trabalho.

Felizmente que há quem esteja igualmente alerta para esta situação: “Para o bastonário da Ordem dos Advogados o despacho do Governo sobre este tipo de multas viola o princípio da proporcionalidade. ‘É uma norma típica de um estado policial’, condena Menezes Leitão” (in TSF.pt de 27/01/2021).

No entanto, o mais desagradável de tudo isto é que esta mesma dedicação e rigor não se verifica quando a “GNR identifica parte da comitiva do Ministro do Ambiente no Algarve” (in sicnoticias.pt de 24/03/2021) onde o Senhor Ministro João Matos Fernandes, em vez de dar o exemplo de confinamento, achou por bem andar a passear por Odeleite com um grupo de correligionários no que classificou de “atividade política” e como muito bem relembrou aos jornalistas “elas não têm qualquer condicionamento”. Ou seja, comer umas gomas e umas sandes na via publica é crime passível de multa de 200€, andar a “fazer discursos ao ar livre debaixo deste magnifico sol” — palavras do Senhor Ministro na reportagem supracitada — já não tem qualquer problema. É legal? Sim. Mas, não é moral.

Não se pode pedir à população para cumprir aquilo que os governantes não cumprem. Tal como acontece com a generalidade dos portugueses, deveriam ter sido todos multados na hora, e depois, quem quisesse, logo recorria da multa de 200€. Mas não, neste caso assim não foi… pequenos poderes. Por falar em dar o exemplo, o próprio Senhor Presidente da República, no exercício das suas funções, deslocou-se recentemente a Espanha e à Santa Sé “Marcelo visita Vaticano e Espanha depois de tomar posse” (in TSF.PT de 9 de Março de 2021) e fê-lo sabendo perfeitamente que as fronteiras portuguesas estão fechadas — nomeadamente a fronteira terrestre com Espanha há mais de oito semanas — e que os portugueses estão fechados e confinados exceto em situações especiais. Esta era uma delas? Talvez. Ele pode legalmente fazê-lo? Pode. No entanto, não lhe fica bem. O que é que era assim tão urgente falar com o Santo Padre ou com sua majestade o rei de Espanha que não pudesse ser feito remotamente? Em teletrabalho? Só ele sabe.

Não obstante, há poucos dias “Marcelo promulga teletrabalho obrigatório até ao fim do ano” (in publico.pt de 29 de Março de 2021) num ato, mais uma vez, inusitado na nossa democracia. Deu o seu aval a que o Governo passe a poder ditar a forma como as empresas privadas devem trabalhar sem estar em vigor qualquer de estado de exceção. Ou seja, o sapinho já está tão quente, mas tão quente, que até já lhe pedimos que se vire de lado e se coza uniformemente a si próprio na panela. Esta situação deixou por demais de ser aceitável. Existe um limite para tudo e, claramente, quando o Estado se intromete diretamente na forma como as empresas devem dirigir o seu trabalho, organizar os seus recursos e interagir com os seus profissionais, quando define o que é, e não é, razoável ser realizado remotamente, quando permite que o trabalhador recorra ao ACT contra o seu empregador sempre que discordar dos critérios do mesmo, quando, mais uma vez, recorre ao medo — leia-se: às multas pesadas — para forçar o cumprimento de medidas que, se fossem racionais, todos as adotariam, estamos a deixar de ser um Estado democrático e a transformarmo-nos numa sociedade musculada, centralizada e autocrática. Ora, que me recorde, não dei autorização a ninguém para transformar a minha pátria num Estado autoritário, vigilante e repressor, nem concordei democraticamente que fosse extirpado dos meus direitos, liberdades e garantias e, muito menos, durante um tempo indeterminado. Como já aqui referi há seis meses, esta pandemia causa três patologias que convém tratar em simultâneo e equilibradamente: a fisiológica, a psicológica e a económica.

Este Governo, com o apoio da Presidência da República, tem vindo a tratar, e nem sempre corretamente, da primeira patologia, mas tem vindo a descurar completamente as outras duas. Ora, as outras duas também atacaram a sociedade portuguesa e, infelizmente, têm um preço muito elevado que teremos todos que pagar. Por favor, peço-vos que comecem seriamente a pensar, quer na saúde mental, quer nas condições económicas dos portugueses e que se deixem de guerras institucionais sobre a constitucionalidade de diplomas que em nada ajuda a combater esta pandemia “Costa manda diplomas de apoios sociais para o Constitucional” (in jn.pt de 31/03/2021) sob pena de, se não o fizerem, estarem a criar a passos largos a nova “Coreia do Norte” da Europa.

Uma Santa (e confinada) Pascoa para todos, em normal emergência.

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