A economia que salva vidas

Por Joana Pais, Professora do ISEG, Universidade de Lisboa, e coordenadora do XLAB-Behavioural Research Lab

Uma equipa de cirurgiões transplantou recentemente um coração de porco num ser humano. Se tudo correr bem, este será o primeiro xenotransplante de coração realizado com sucesso, um importante avanço da medicina que poderá vir a atenuar a falta de órgãos humanos para transplante.

Tal como a medicina, a ciência económica tem vindo a ganhar terreno e a alocação de órgãos para transplante é uma das suas aplicações de sucesso, facto que já foi reconhecido com o Nobel atribuído a Alvin Roth e Lloyd Shapley em 2012. O trabalho destes economistas centrou-se no transplante renal. Tal como acontece com outros órgãos humanos para transplante, os rins são um recurso escasso. Nos EUA, por exemplo, há aproximadamente 100 000 pacientes à espera de um transplante renal, com cerca de 40 000 novos pacientes para apenas 20 000 transplantes a cada ano.

O caso do transplante renal é particularmente interessante do ponto de vista científico dada a possibilidade de realizar transplantes de dador vivo. De facto, uma pessoa saudável pode querer doar um rim a um ente querido, que por vezes, infelizmente, não o pode receber por incompatibilidade imunológica. Há uns anos atrás este rim era geralmente um recurso desperdiçado, mas uma equipa de economistas sedeada nos EUA e liderada por Roth, desenhou um mercado para facilitar trocas de rins para transplante. Este mercado – muito diferente dos mercados a que estamos habituados, desde logo porque não há dinheiro – baseia-se num registo de pares dador-recetor incompatíveis e num algoritmo matemático que permite encontrar combinações de pares compatíveis.

Hoje realizam-se trocas entre pares dador-recetor incompatíveis em vários países. Numa troca cruzada que envolve dois pares, por exemplo, o rim do dador do par A é alocado ao paciente do par B, com o qual é compatível; e o rim do dador do par B é alocado ao paciente do par A. As trocas cruzadas podem envolver mais pares – em Portugal, por exemplo, realizou-se em 2020 o primeiro transplante quadruplo ao abrigo do Programa Nacional de Doação Renal Cruzada – o que representa um desafio logístico dado que, para garantir que cada par participante recebe o rim que lhe foi alocado, todas as cirurgias devem ser realizadas em simultâneo.

Para contornar as limitações logísticas, os economistas levaram o mecanismo de troca mais longe usando os chamados dadores não direcionados, dispostos a doar um rim, não a um familiar ou amigo, mas a qualquer pessoa que dele necessite. Um dador não direcionado pode doar o seu rim à lista de espera, mas pode também doar o seu rim à pool de pares dador-recetor que são incompatíveis entre si e desencadear uma longa cadeia de transplantes, tão longa quanto a que, em 2012, envolveu 60 pessoas nos EUA, e assim salvou 30 pacientes com insuficiência renal.

A ciência continua a dar cartas, aperfeiçoando os algoritmos com o objetivo de aumentar o número de rins disponíveis para transplante e melhorar o processo de alocação. Mas restrições de ordem ética e legal à dádiva em vida têm limitado a sua aplicação. Por cá, o Programa Nacional de Doação Renal Cruzada foi finalmente criado em 2010 e, em 10 anos de atividade, permitiu o transplante de 28 doentes. Entretanto, de acordo com dados do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, existiam quase 2 000 pacientes à espera de um transplante renal no final de 2020. A espera é longa, podendo atingir os cinco anos, e nem todos sobrevivem. Só em 2020, morreram em Portugal 40 pacientes à espera de um rim.

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