20 anos do código de insolvência – da vergonha à reabilitação das pessoas singulares

Por Zita Xavier de Medeiros, Associada Sénior da Cerejeira Namora Marinho Falcão

 

Celebram-se, em 2024, vinte anos desde a aprovação do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE). Vinte anos desde a revogação do falecido Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência e de uma revolução no paradigma das insolvências.

Nos termos da lei antiga, era considerada em situação de insolvência a empresa que, por carência de meios próprios e por falta de crédito, se encontrasse impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações.

O CIRE veio aplicar-se a todas as pessoas singulares e coletivas e define a situação de insolvência como aquela em que o devedor que se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

De todas as muitas mudanças verificadas, destaco aquela que me parece a mais inovadora para as pessoas singulares: a exoneração do passivo restante.

Esta nova figura inspirou-se no princípio do fresh start americano, entretanto, acolhido também na legislação alemã (o Restschuldbefreiung). Este princípio pretende dar ao devedor uma segunda oportunidade de se organizar e viver livre do ciclo de incumprimento e pobreza anteriores.

Em Portugal, o fresh start acontece por via da exoneração do passivo restante que determina a extinção das dívidas que não tenham sido totalmente pagas no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao enceramento do processo de insolvência.

Por motivos de ordem social, apenas não se extinguem (i) os créditos por alimentos (ii) as indemnizações devidas por fatos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, (iii) os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias em consequência de crimes ou contraordenações e (iv) os créditos tributários e da segurança social.

Ou seja, no termo dos três anos, a larga maioria dos créditos extinguem e o devedor fica deles desonerado e livre.

Por este motivo, são muitos os Autores que entendem que, com o CIRE, o processo de insolvência deixou de ser o processo da vergonha e dos credores para passar a ser o processo da reabilitação e retoma.

No entanto, para beneficiar deste privilégio, o devedor tem de passar um período “probatório”, o chamado período da cessão de rendimentos.  Durante este período de três anos[1], o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário que, normalmente, é a pessoa que foi nomeada, no início do processo como Administrador de Insolvência. O rendimento disponível corresponde, na prática, ao rendimento que o insolvente aufira a mais do que lhe seja necessário para assegurar o seu sustento digno e do seu agregado familiar. Ou seja, a parte necessária a tal sustento e que é assegurada ao insolvente corresponde ao rendimento indisponível e, em regra, computa-se em valor equivalente ao salário mínimo nacional, podendo ser superior se o insolvente assim o requerer, fundamentadamente, ao tribunal.

Ao mesmo tempo, durante este período, o insolvente deve transparência e lealdade ao fiduciário, credores e ao tribunal, não podendo ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, devendo informar sempre que se verifique alguma alteração; devendo exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo; deve, ainda, entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; deve informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência e, claro, não deve fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

O balanço desta inovação é claramente positivo e permitiu as muitas famílias reerguerem-se e retomarem o leme das suas vidas.

Ao mesmo tempo, pediu-se, essencialmente, às instituições financeiras – em regra, as mais “afetadas” pela exoneração – que cumprissem a sua função social, compromisso a que estas acederem, resolvendo os créditos através de medidas contabilísticas que lhes permitiram equilibrar as perdas decorrentes da aplicação desta figura legal.

Resta, portanto, voltarmos a pensar se, mais do que aos bancos, não cumprirá ao Estado assumir o mesmo compromisso social, exonerando, ainda que parcialmente, o devedor singular das dívidas tributárias que nasceram num determinado momento de crise fortuita. Mantendo-se o quadro atual, a dívida tributária acompanhará o insolvente, beneficiário da segunda oportunidade, até ao fim dos dias, dando razão ao ditado que conta que “só temos duas certezas na vida: a morte e os impostos”.

 

[1] Anteriormente a 2022, era de cinco anos.

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