“Ganhamos fazendo os outros ganhar”: Élia Ferreira, Partner na Deloitte França

A principal actividade consiste em aconselhar os clientes (corporate e private equity), na compra e venda de empresas, desde o projecto de compra até à sua execução operacional.

Élia Ferreira é partner na Deloitte França na qual dirige os serviços de TI, Tecnologia e Cyber M&A. Nasceu em Lisboa, há 48 anos e vive em França desde 2000. Licenciou-se em Matemática na Universidade de Lisboa, realizou uma pós-graduação em Matemáticas Financeiras e estudou administração de empresas no IAE d’Aix-en-Provence. Fez parte dos primeiros estudantes erasmus, na Université Pierre et Marie Curie em Paris, e também cursou Belas Artes, na ESBAL. Em 2008, criou a primeira equipa especializada na análise e avaliação dos aspectos tecnológicos no contexto de fusões e aquisições. Desde essa data, já liderou mais de 250 operações (fusões e aquisições) internacionais que envolveram montantes entre os 20 milhões e os 20 mil milhões de euros. Entre as fusões e aquisições mais conhecidas, figuram as operações que envolveram a XL Catlin e a AXA; a Air Liquide Welding e a Lincoln Electric; a Areva, a Framatome e a EDF; e a Danone e a Unimilk; entre outras. Em 2016, tornou-se na primeira mulher portuguesa a ter o estatuto de associada (partner) numa grande consultora fora do país. Em 2019 e 2021, recebeu o Prémio de Excelência atribuído pelo CEO mundial da Deloitte no reconhecimento de contribuições excepcionais. É casada e tem dois filhos. Interessa-se por História de Arte, nutrição e meditação. 

“A tecnologia responde a uma das sete necessidades fundamentais da humanidade que é a de comunicar.” 

Visitou Paris quando tinha nove anos e, já na década de 90, garante uma vaga no programa erasmus para a Universidade Pierre e Marie Curie, em Paris. Qual o fascínio com a capital francesa e porque decidiu ficar em Paris?
Quando vim a Paris pela primeira vez, em 1983, fiquei estarrecida com a sofisticação e beleza da cidade, com a riqueza da sua cultura, com a classe dos seus habitantes e com a emancipação das parisienses. A solidez da economia francesa e a sua posição a nível internacional acabaram por me convencer que eu queria ser francesa para jogar neste campeonato! Desde os anos oitenta muitas coisas mudaram, mas eu continuo a amar este país e acho que ele corresponde bem! 

Quais as suas funções no departamento de Fusões e Aquisições e de Tecnologia da Deloitte?
No departamento de Fusões e Aquisições da Deloitte em França, sou o leader dos serviços de Tecnologia, Digital e Cyber. Também tenho um papel importante na animação europeia e mundial desta actividade que criei no mercado francês há 14 anos. Além disso, sou responsável pela transformação e inovação do referido departamento e parte do seu comité de direçcão. Nos últimos dois anos, também tenho contribuído para projectos estratégicos da Deloitte, como criar dois centros tecnológicos mundiais em Portugal, que é um dos meus grandes orgulhos, ou coordenar as iniciativas com a firma turca. 

O que mais a fascina na tecnologia?
A tecnologia responde a uma das sete necessidades fundamentais da humanidade que é a de comunicar. O que me fascina é a sua capacidade de mudar o nosso quotidiano e a forma como vivemos, interagimos, nos organizamos e respondemos às nossas outras necessidades (como educar ou cuidar da saúde) transformando coisas aborrecidos em processos eficazes. Desde o silex, a roda, ou a escrita, a tecnologia sempre permitiu libertar tempo e energia, tal como desenvolver potencial, para actividades muito mais interessantes para o ser humano, como as interacções sociais ou compreender a natureza.
Antes de entrar na Deloitte como a primeira portuguesa a ter o estatuto de associada numa grande consultora em França, passou por empresas como a Laphal, Capgemini e PwC. O que mais a marcou neste percurso profissional? É uma questão interessante, porque as respostas são de vários níveis: a complementaridade das abordagens entre a academia (fiz investigação e ensino universitário no fim dos estudos), o mundo da empresa (em que fui directora dos Sistemas de Informação) e da consultoria; as possibilidades de desenvolvimento e evolução, para quem ousa e persiste; a necessidade de se superar, ultrapassar as próprias distorções cognitivas, para avançar. Para aqueles que, como eu, sentem sempre a síndroma do impostor, isto é fundamental; a necessidade de questionar os objectivos, a sua missão, de comprender e amplificar aquilo que nos motiva para sentir uma verdadeira e profunda satisfação na actividade profissional; a facilidade de ter sucesso quando se trabalha bem! No fim do dia, as pessoas e as interacções humanas são o essencial. Gosto de dizer que ganhamos fazendo os outros ganhar, crescemos fazendo os outros crescer. 

Como é o seu dia-a-dia de trabalho em França?
Como considero que só trabalho quando faço coisas aborrecidas, trabalho pouco! O meu dia-a-dia é muito variado. A minha principal actividade consiste em aconselhar os nossos clientes, Corporate e Private Equity, na compra e venda de empresas, desde o projecto de compra (dito pré-deal) até à sua execução operacional (dito post-deal). Como qualquer gestor, associo actividades de expertise técnica, de gestão do negócio e das equipas (recrutamento, formação, mentoring). Os momentos que prefiro são as conversas com os clientes, as negociações e os momentos de orientação junto das equipas. Sinto-me super privilegiada por estar em contato com tantas realidades, de contribuir para o sucesso dos que me rodeiam e para a imagem positiva de Portugal no mundo. Além disso, planifico sempre duas ou três coisas que me fazem bem, e desde há quatro anos uma delas é deslocar-me de bicicleta no quotidiano. 

Quais as principais dificuldades e adversidades que teve de enfrentar enquanto mulher gestora?
Até entrar como partner para a Deloitte, sempre senti que ser mulher não era uma vantagem. O mundo das fusões e aquisições e da Tecnologia são predominantemente masculinos, e as funções de topo competitivas. Pude sentir que não ter a mesma forma de ver ou sentir as coisas que certos patrões não era uma benesse. Que afirmar o meu ponto de vista era menos bem vindo que da parte dos meus congéneres masculinos. Também me faltaram exemplos de mulheres, que fossem um modelo que gostasse de seguir. E finalmente, quando me tornei mãe há 11 anos, a acumulação de papéis em que o exemplo de sucesso não abundava, foi um grande desafio! Senti que duvidavam da minha capacidade de suportar o encargo. Curiosamente, os meus clientes sempre me apoiaram e estou-lhes infinitamente grata. 

Como avalia o tecido empresarial português?
O tecido empresarial português tem, na minha opinião, várias componentes distintas: os pequenos negócios, quase sempre familiares, alguns muito lucrativos e bem geridos e, por definição, bastante dependentes dos seus dirigentes; as médias empresas, na mesma linha dos precedentes, com mais alcance e projecção potencialmente internacional, dependendo da visão e competência dos seus gestores; as grandes empresas, que podem e devem ter acesso a alguns “bold plays”; e os novos rebentos de startups, growns-up, e unicórnios, quase todos tecnológicos, com várias histórias de grande projecção e sucesso, que todos admiramos. Junta-se à paisagem todo o subjacente importante de actores do financiamento, nomeadamente fundos de investimento e family offices, que vêm irrigar todo o tecido empresarial e determinar uma parte não negligenciável do seu sucesso. 

Quais os principais desafios que Portugal enfrenta e vai enfrentar nos próximos anos?
Penso que os desafios que Portugal enfrenta a nível económico, climático, social, e educativo são de várias ordens. Algumas dos temas que me parecem importantes: capitalizar sobre o fascínio actual que Portugal exerce, unindo brandos costumes, uma meteorologia e padrão de vida atractivos, serviços de qualidade a um preço razoável, capacidade de inovação, para ancorar posições nos nossos principais segmentos de actividade, sobretudo aqueles que são estratégicos para o futuro, e distintivos; acelerar o desenvolvimento de competências tecnológicas de nível mundial para servir uma procura importante; equacionar procura e oferta, para jogar no plano da qualidade/raridade, visto que a nossa capacidade de resposta e mercado internos, têm um volume limitado; valorizar os nossos saberes e abordagens, entre tradição e modernidade, que são verdadeiramente distintos e preciosos. Nomeadamente, manter a malha de proximidade do tecido social, o acolhimento caloroso, e autêntico em tempos de grande procura. É preciso pensar a longo prazo, e construir solidez para atravessar zonas de turbulência, pois em última análise, é nesse horizonte que o sucesso se joga. 

Como “mata saudades” do nosso País?
Confesso que nunca me sinto longe de Portugal. Todos os dias falo português com os meus filhos, a tia que vive comigo, a nossa porteira adorável e a sua família e ao telefone com os meus pais. Todas as semanas troco ideias de negócios com os meus sócios e colegas portugueses. Os meus amigos franceses sonham em viver ou passar férias em Portugal, e temos sempre uma viagem em perspectiva. No sítio onde vivo há uma estátua do Eça de Queirós, e uma N. Sra. de Fátima na igreja. Já para não falar das encomendas que faço pela internet às maravilhosas empresas portuguesas, que me valem muitos elogios dos meus convidados. 

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