A atividade seguradora em tempos de inflação

Por Miguel Guimarães, director-geral adjunto da Associação Portuguesa de Seguradores (APS)

Não é um ambiente inédito, não atinge sequer os padrões de outros tempos, não tão longínquos assim, mas representa uma inegável alteração de contexto em relação ao ambiente de estabilidade de preços que vingava desde o final dos anos 90 e, sobretudo, desde o início da década passada (em Portugal, por exemplo, a taxa de inflação agregada entre 2011 e 2021 foi basicamente idêntica à de 2022, perto de 8%).
Acresce que resultou de uma transição muito súbita a partir de 2021, tendo a pressão inflacionista saltado rapidamente das commodities originalmente impactadas para um amplo conjunto de outros bens e serviços, de tal forma que estava já completamente generalizada em meados de 2022, depois de instalada a guerra na Ucrânia (em Portugal, a taxa de inflação média escalou de 1,27% em 2021 para 7,83% em 2022).
Para a actividade seguradora, este ambiente teve (e tem) impactos consideráveis1, embora distintos em função do perfil dos sinistros e das responsabilidades envolvidas em cada tipologia de seguros.

No segmento dos seguros de Vida:
Os seguros de Vida geram tipicamente responsabilidades financeiras de longo prazo, sejam relacionadas com a remuneração de poupanças, sejam com o eventual pagamento de valores contratualizados em caso de ocorrência do risco sobre as pessoas seguras.
O efeito directo do agravamento da inflação é, por isso, limitado neste segmento, mas o impacto indirecto, por via do aumento das taxas de juro que normalmente o acompanha, pode ser substancial.
Por um lado – o lado do passivo –, este aumento reflecte-se numa redução do valor das responsabilidades futuras provisionadas em balanço, que corresponde ao respectivo valor actual descontado exactamente com taxas de juro de prazo equivalente.
Por outro – o lado do activo –, reflecte-se numa redução do valor dos activos em carteira para cobertura dessas mesmas provisões, em especial dos títulos de rendimento fixo que, pelo seu baixo risco, constituem a parcela maioritária desta carteira. 

O efeito líquido destas duas forças – uma redução do passivo e uma redução do activo – ponderará factores como a duração dos activos e dos passivos e a dimensão relativa de activos de rendimento fixo, determinando o impacto sobre os resultados e os capitais próprios do sector.
Mas, para além desta consequência contabilística, o aumento das taxas de juro abala também as condições da oferta e da procura dos produtos de poupança explorados no âmbito da actividade seguradora.
Para a oferta, pode representar uma oportunidade para promover produtos mais competitivos, assentes em activos de renovada rentabilidade, incluindo produtos com taxas de rendimento garantidas, onde o sector tem particular experiência. Mas a transição tende a ser gradual, envolvendo avaliações cuidadosas do comportamento das taxas de juro e cautela no desenho e oferta de produtos, o que pode dar espaço a outras soluções alternativas de poupança pontualmente mais competitivas (como foi o caso em Portugal, com uma série de Certificados de Aforro que alcançou, entre 2022 e 2023, uma remuneração especialmente atractiva).

Para a procura, o aumento das taxas de juro, associado ao agravamento da inflação, tende a impor pressão orçamental sobre as famílias endividadas, condicionando naturalmente a sua capacidade de aforro e obrigando muitas delas a recorrer mesmo à desmobilização de poupanças acumuladas, nomeadamente em produtos de seguros, para fazer face aos seus compromissos com empréstimos contraídos (foi um fenómeno de grande impacto em Portugal, em particular com os PPR, potenciado ainda por medidas políticas de flexibilização extraordinária do respectivo regime de resgates). Acresce que este resgate antecipado de poupanças ocorre, exactamente, quando boa parte dos activos se encontram desvalorizados, podendo gerar perdas para o aforrador e/ou para a seguradora.

No segmento dos seguros Não Vida:
Nos seguros Não Vida prevalecem sinistros com danos materiais ou corporais de regularização célere e, logo, responsabilidades de curta duração. São excepções, ainda que não menosprezáveis, as responsabilidades com o acompanhamento clínico de pessoas com lesões graves cobertas por seguros de acidentes de trabalho e de responsabilidade civil, em especial de automóvel, e (em Portugal) as responsabilidades com pensões (vitalícias) de acidentes de trabalho.
O impacto mais directo da inflação decorre, evidentemente, da sua repercussão no custo dos bens e serviços normalmente envolvidos na regularização dos sinistros, ainda que o sector segurador tenha capacidade para, numa primeira fase, absorver parte destes impactos por via da contratualização de condições com prestadores.

Para a rentabilidade do sector, o problema decorre, não tanto do nível de inflação em si, mas mais da incapacidade de o estimar apropriadamente no início do período do contrato, quando o prémio é definido. Em termos conceptuais decorre, portanto, do ciclo de produção invertido da actividade seguradora, mais concretamente do desnivelamento entre as expectativas no momento inicial do cálculo do prémio e a efectiva dimensão do agravamento dos custos, quando o sinistro ocorre e tem de ser reparado.
Para as responsabilidades que permanecem em balanço para além da duração (tipicamente anual) do contrato, o impacto directo da inflação nos períodos seguintes tende já a ser mitigado na conta de resultados pela metodologia de cálculo das correspondentes provisões técnicas, tal como se descreveu em relação aos seguros do segmento Vida (um efeito bem explícito em Portugal na redução, em 2022, da provisão para sinistros de acidentes de trabalho, que acautela um grande volume de responsabilidades de longo prazo).

Em resumo:
Como para muitas outras áreas da economia, cenários inesperados de inflação não são, obviamente, favoráveis à actividade seguradora.
Embora o sector tenha mecanismos de mitigação de alguns dos seus impactos, a perturbação que este ambiente cria nos seus consumidores e aforradores e na gestão do seu ciclo de produção invertido é normalmente prejudicial para o seu desempenho económico.
Mas a capacidade de gestão de ambientes de incerteza está no ADN do sector segurador. Isso mesmo tem ficado demonstrado em todas as conjunturas delicadas recentes, sempre ultrapassadas com resiliência, sempre geridas perto dos clientes, sempre respeitando as responsabilidades contratuais assumidas. 

Ler Mais