Dos combustíveis fósseis para os metais raros: transição energética na Europa exige uma indústria mineira forte, dizem especialistas
A União Europeia assumiu o compromisso de alcançar a “neutralidade climática” até 2050, altura em que, de acordo com a estratégia de longo-prazo traçada pelo bloco em 2018, deixará de emitir gases com efeito de estufa, designadamente dióxido de carbono. Essa estratégia assenta numa mão cheia de prioridades estratégicas, entre as quais a descarbonização da produção de energia e a redução da dependência do fornecimento por parte de países terceiros, e a transformação do setor dos transportes, designadamente com a massificação da utilização de carros elétricos.
Num documento oficial com o título “A nossa Visão para um Planeta Limpo para Todos”, disponibilizado no website da Comissão Europeia, na altura presidida por Jean-Claude Juncker, é apontado que “Alcançar uma economia climaticamente neutra até 2050 é exequível tecnológica, económica e socialmente, mas isso requer profundas transformações sociais e económicas no espaço de uma geração”.
Contudo, o que é que uma transformação dessa envergadura, uma verdadeira revolução, implicará? Especialistas ouvidos pela ‘Executive Digest’ apontam que a Europa está a procurar libertar-se do pulso de ferro dos combustíveis fósseis e a caminhar em direção a uma economia dependente de metais, entre eles as chamadas “terras raras”, que são essenciais para a transição para um modelo de produção energética livre de emissões diretas de dióxido de carbono e para um leque crescente de equipamentos dos quais os cidadãos e as economias do bloco dependem, e, no quadro da transição energética em curso, dependerão cada vez mais: smartphones, computadores, baterias, carros elétricos, turbinas eólicas e painéis fotovoltaicos, monitores táteis e ecrãs de alta-definição, só para nomear alguns.
Uma verdadeira transição energética exige o consumo de cada vez mais minerais
Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, explica que “o crescente uso de energias renováveis requer um aumento substancial na produção de painéis solares, turbinas eólicas, baterias, veículos elétricos (EVs), eletrolisadores para hidrogénio e linhas de energia”.
Mas restam dúvidas quanto à capacidade que a União Europeia poderá hoje ter para concretizar uma transição sustentável a longo-prazo.
Dados do ‘Statista’ apontam que, em 2021, a China foi responsável por 60,63% da produção mundial de terras raras. Em segundo lugar, mas bastante atrás, surgem os Estados Unidos da América, com uma quota parte de 15,52% da produção desse ano. A dominância e a importância da China no mercado das terras raras são inequívocas, e isso pode ser, desde logo, comprovado pela dependência da União Europeia das exportações chinesas.
Um relatório de 2021, financiado pela UE e elaborado pela European Raw Materials Alliance, especificamente dedicado aos ímanes de terras raras, revela que a oferta na Europa de ímanes de terras raras é alimentada em 98% pela China. Esses ímanes, segundo o relatório, são usados em 95% dos carros elétricos com motor de tração, bem como em equipamentos como colunas de som, aparelhos para produção de energias de fontes renováveis, robótica e bombas de água. Com o crescimento da mobilidade elétrica e do abandono dos combustíveis fósseis em prol de modelos de produção energética assentes em fontes “limpas” e renováveis, essa dependência tenderá, inevitavelmente, a aumentar.
As terras raras são 15 elementos químicos, agrupados na família dos lantanídeos: lantânio, cério, praseodímio, neodímio, samário, európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio, lutécio e ítrio. Os quatro primeiros são considerados terras raras “leves”, os três seguintes são tidos como terras raras “médias” e os últimos oito são considerados terras raras “pesadas”.
Daniel de Oliveira, coordenador da Unidade de Recursos Minerais e Geofísica do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, explica que, apesar do nome, “as terras raras não são assim tão raras”. Esses elementos estão presentes na crosta terrestre em concentrações não inferiores às de metais de utilização mais comum, como o cobre, o níquel ou o cobalto. No entanto, as formações geológicas que permitem a ocorrência das terras raras não permitem concentrações de grande dimensão num só local.
No que toca à sua utilização, Daniel de Oliveira refere que as terras raras “pesadas” têm uma maior importância do ponto de vista económico, pois são amplamente utilizadas nas áreas da tecnologia avançada, como no setor militar, para o fabrico, por exemplo, de óculos de visão noturna.
Também António Mateus, Professor Catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e investigador no Instituto Dom Luiz, sublinha que “as terras raras têm uma enorme importância económica”, destacando a sua utilização nos computadores, nos telemóveis e nos ecrãs de alta-definição. Durante a nossa conversa via MS Teams, apontou para os fones que eu estava a usar para ouvi-lo, dizendo que “por exemplo, os auriculares que está a utilizar têm ímanes de neodímio”.
“Isto mostra que, de facto, as terras raras têm uma enorme valorização económica.”
A hegemonia da China no mercado das terras raras e a dependência da UE
Ambos os especialistas estão de acordo no que toca à preponderância da China no mercado das terras raras, e identificam o depósito de Bayan’obo, no nordeste desse país, como um dos maiores em todo o mundo, fornecendo mais de metade das terras raras a nível mundial. O especialista do LNEG aponta que os Estados Unidos e a Austrália, em tempos, também ocuparam lugares de destaque nas cadeias de abastecimento mundiais de terras raras, mas que, no início dos anos 1990, a China, com preços mais baixos do que a concorrência, “conseguiu dar cabo de duas fontes de terras raras ‘Europe friendly’ e começou a dominar o mercado”.
Destacando a sua “posição hegemónica” nesse mercado, António Mateus afirma que “desde há muito anos, que [a China] tem apostado nas subidas na cadeia de valor”, procurando uma maior consolidação do seu monopólio com o investimento em capacidades próprias de transformação e refinação dos concentrados geológicos. Com isso, “o mundo ocidental deixou de produzir uma série de fases minerais, deixou de ter mineração e deixou também de investir nas cadeias de transformação”, ficando dependente da produção chinesa.
“Isso permite à China, de alguma forma, condicionar de forma significativa quer a produção da matéria-prima primária, quer a colocação em mercado do resultado da transformação, já com preços muito mais elevados”, diz o catedrático da FCUL.
No entanto, o Canadá e a Austrália, com longas tradições mineiras, são “os únicos países que têm, de alguma forma, contrariado com sucesso esta política hegemónica da China”, refere António Mateus, acrescentando que mesmo as operações mineiras detidas pela China na Austrália são obrigadas a processar os minerais nesse país meridional.
A História tem dado sucessivas provas, algumas bem recentes e que sentimos hoje mesmo, de que a dependência significativa de fornecimentos vindos países que podem não partilhar das mesmas visões, princípios e interesses pode ser um jogo arriscado e ter sérias consequências. Numa publicação de 2014, a Comissão Europeia apontava que a Europa tem como objetivo desenvolver a sua própria indústria de terras raras, “para alcançar a resiliência e a autonomia estratégica das cadeias de valor de terras raras e ímanes da Europa”. Mas poderá a Europa “sacudir” a dependência que tem do maior país asiático e adquirir capacidades de produção próprias?
Reconhecendo que “a autonomia total é impossível, atendendo às necessidades, por exemplo, em termos de quantidades e de pureza”, António Mateus avança que a Europa tem tardado em desenvolver essas valências e que o bloco “tem que investir. E não apenas nas terras raras”, nas também noutros segmentos minerais. E desse investimento poderá depender a concretização do Pacto Ecológico Europeu e, no fundo, da transição energética como um todo na região.
“A União Europeia, se de facto quer ter um programa concretizador ao nível do ‘Green Deal’, tem que encarar com realismo a necessidade, não de assegurar uma independência total, mas de ser um ‘player’”, aponta, acrescentando que “não basta ter dinheiro para comprar, e depois ignorar os problemas sociais e ambientais noutras regiões do planeta”. Essa é uma referência à legislação relativamente mais permissiva que existe noutros países, que permite que Estados e empresas explorem terras raras e outros minerais consumidos pelas economias europeias, ignorando os problemas ambientais e sociais causados por explorações mineiras.
“Se tiver dentro de casa a capacidade produtiva, assente numa série de normas, tenho a autoridade moral para apontar o dedo a quem não as cumpre”, explica o especialista, e acrescenta que “se a Europa viver só de importação, não tem essa autoridade moral”.
As terras raras na Europa e em Portugal
De acordo com o website do EURARE, um programa financiado desde 2013 pela Comissão Europeia e que tem como objetivo desenvolver a indústria europeia de terras raras, existem na União vários recursos identificados como tendo potenciais interessantes, mas não existem reservas, a porção do recurso com capacidade para uma exploração rentável. Portugal e Espanha surgem entre os países identificados como tendo recursos.
Contudo, o potencial de Portugal em matéria de terras raras “é extremamente baixo”, salienta Daniel de Oliveira, e identifica quatro localidades como sendo as que poderão ter as maiores concentrações de terras raras: Penha Garcia (Idanha-a-Nova), o jazigo de ferro de Moncorvo, o maciço de Monchique (Algarve) e Vale de Cavalos (Portalegre). Este último é também identificado pelo EURARE.
António Mateus diz que “não são recursos muito significativos do ponto de vista económico”, mas aponta que ainda não existe um conhecimento suficiente que permita concluir, com toda a certeza, que esses recursos não possam vir a constituir explorações rentáveis no futuro. “Há muito trabalho a fazer em Portugal, há muito trabalho a fazer na Península Ibérica, no sentido de conhecer os recursos.”
Quanto a Portugal, frisa que “se queremos apostar na modernização e no desenvolvimento do país, não podemos ignorar a indústria pesada e a indústria energeticamente intensiva”, e, reconhecendo que essas atividades não são “green”, explica que “não precisamos de ter 50 operações mineiras a funcionar ao mesmo tempo. Bastam duas ou três, devidamente apoiadas em tecnologia avançada”.
“Em Portugal, os recursos que conhecemos são pequenos, e não permitem uma exploração neste momento. Mas se continuarmos a investir em prospeção e pesquisa, eventualmente, poderemos delimitar outros recursos, mais vantajosos”, defende.
No contexto da UE, é no Norte que reside o maior potencial no que toca a terras raras, designadamente na Suécia, em Olserum e Norra Kärr. Mas é preciso investir mais para aferir o real potencial da Europa nessa área. “Precisamos de conhecer esses recursos, para podermos geri-los de uma forma sustentável, como qualquer outro recurso natural. Não podemos esterilizar esse recurso, nem colocar duas ou três autoestradas por cima dele. Não podemos planear uma distribuição urbanística que não tenha em conta esse património natural, que está sob a nossa salvaguarda”, explica António Mateus.
A atividade mineira é frequentemente travada pela contestação pública. Especialistas pedem que populações sejam devidamente esclarecidas
O especialista da FCUL sublinha que é preciso incentivar a prospeção e a pesquisa, e que isso implica recolher amostras e fazer furos, e que essas atividades são frequentemente obstaculizadas por uma opinião pública que, de acordo com ele, “é extraordinariamente cética e está, em muitos aspetos, manipulada”.
António Mateus lamenta que as populações estejam mal informadas sobre a atividade mineira e que a grande maioria da contestação social face a explorações mineiras assente em ideias pré-concebidas sem fundamento acerca do setor, destacando que aos especialistas da área não têm sido dadas as plataformas e canais necessários para poderem esclarecer devidamente o público, frequentemente enviesado por interesses políticos. “Não podemos fazer depender estes projetos, que são muito intensivos do ponto de vista do capital, de ciclos eleitorais.”
Sobre a perceção generalizada de que a indústria mineira é nociva para as populações e para o ambiente, António Mateus diz que “não podemos partir do princípio de que somos todos prevaricadores”, explicando, sem rodeios, que os que não cumprem as regras devem ser punidos e servir de exemplo. Neste aspeto, Daniel de Oliveira refere que “mesmo com todo o cuidado que possamos ter, pode haver um acidente” e que são esses incumpridores que dão “uma imagem muito negativa às entidades mineiras e ao processo de extração de matérias-primas”.
O economista Paulo Rosa argumenta que “a produção de minerais de transição energética pode levar a emissões significativas de gases de efeito estufa” e à “perda de biodiversidade e à perturbação social, devido a alterações na utilização da terra, esgotamento e poluição da água, contaminação relacionada a resíduos e poluição do ar”. Contudo, sublinha que “essa contribuição para as emissões não nega as vantagens climáticas das tecnologias de energia limpa quando consideradas em conjunto com as emissões do ciclo de vida completo de outras tecnologias”.
Esclarecendo que a União Europeia está munida de uma legislação social e ambientalmente forte, e que essas exigências não devem, em circunstância alguma, ser reduzidas para acomodar interesses económicos, António Mateus sustenta que “atividade mineira não é incompatível com a preservação do ambiente, não é incompatível com modelos de desenvolvimento sustentável. É útil e necessária para quebrarmos assimetrias, por exemplo, aos níveis social e tecnológico”.
“A concretização das medidas da transição energética implica um esclarecimento cabal às populações, no sentido de haver uma construção de pontes verdadeiramente construtiva que fomente o diálogo, que incremente o escrutínio esclarecido, que mobilize as pessoas”, sublinha o académico da FCUL.
Sobre o potencial de emissões de dióxido de carbono da indústria mineira, e afirmando que é preciso implementar estratégias de redução drástica de emissões em todos os setores, António Mateus aponta que o turismo é um setor com uma “pegada ecológica brutal”, ao nível dos transportes, da produção de resíduos e do consumo de água. Contudo, sugere haver relutância em tocar nesse setor, por ser uma importante fonte de receitas para o país. Mas deixa um alerta: “não devemos por os ovos todos no mesmo cesto”, pois uma economia fortemente assente numa só atividade poderá sofrer bastante em tempos de crise, tal como ficou demonstrado durante a pandemia de Covid-19 e a suspensão das viagens internacionais. “É essencial diversificar.”
É possível uma transição energética sem atividade mineira?
Questionado sobre se seria possível concretizar o Pacto Ecológico Europeu sem que a Europa desenvolva a suas próprias capacidades de exploração e transformação de terras raras e de outros minerais, o especialista confessa-se cético.
“A indústria mineira é um aspeto muito crítico no sucesso futuro do ‘Green Deal’”, explica. E, pelo menos por agora, a União Europeia está dependente de importações.
Na UE, “temos capacidade tecnológica para o fazer, temos legislação muito rigorosa e muito exigente do ponto de vista ambiental”, esclarece o Professor da FCUL, e “consequentemente, há que encarar a necessidade de uma indústria pesada, energeticamente intensiva, como é a indústria mineira, mas que é vital para a criação de riqueza e para a sua consequente redistribuição”.
Paulo Rosa aponta que “atualmente, os combustíveis fósseis representam 84% da matriz energética mundial, e, por isso, um processo de descarbonização nas próximas décadas só poderá ser exequível com um elevado investimento nos metais industriais e recursos minerais indispensáveis à produção de turbinas eólicas, painéis solares e carros elétricos”.
“Há uma grande confusão na sociedade, porque se olha para a atividade mineira como sendo uma coisa do passado. Mas é uma coisa do futuro, cada vez mais”, assegura, por sua vez, António Mateus.