Como a Disney fez crescer um negócio de 2,7 mil milhões (com a ajuda do Mickey)
Apple, Gucci, Kate Spade, Uniqlo, L’oréal e Maybelline são apenas algumas das empresas que vendem produtos do mickey para adultos. Eis como a Disney fez com que os adultos se apaixonassem por uma personagem de desenhos animados
Em Março, a Gucci começou a vender uma mala de quatro mil euros com o formato da cabeça do Mickey Mouse. Possivelmente é o mais luxuoso dos produtos Mickey Mouse feitos para adultos, mas é um dos muitos que têm invadido o mercado. Nos últimos meses, a Opening Ceremony lançou uma linha de vestidos etéreos e roupa desportiva com imagens do antigo Mickey. A Gigi Burris Milliner criou uma bandolete de cristais de 400 euros com as orelhas do rato. A L’Oréal e a Maybelline criaram conjuntos de maquilhagem com a cara do Mickey. A Kate Spade lançou um saco de 177 euros com uma tira de banda desenhada. A Uniqlo tem dezenas de T-shirts com o Mickey em variadas poses. E para não ficar atrás, a Apple lançou uns auscultadores Beats de 270 euros.
Parte deste recente lançamento de produtos Mickey deve-se ao facto de a personagem ter feito 90 anos. A Walt Disney Company, juntamente com outras marcas que usam personagens Disney, vê os aniversários como oportunidade para vender ainda mais. Segundo o “Wall Street Journal”, Mickey Mouse e o seu grupo (incluindo Minnie, Pateta, Pluto e Donald Pato) venderam 2,7 mil milhões de euros em merchandising em 2018, um número que inclui produtos para adultos e crianças. E isto é apenas cerca de metade do que o Mickey rendeu em 2004, quando a Disney lançou inúmeros produtos para celebrar o seu 75.º aniversário.
Todas estas coisas conduzem às perguntas: por que é que os adultos iriam usar itens com a cara de um roedor sorridente? O que cria o apelo duradouro deste rato antropomorfizado?
Tudo tem a ver com o facto de a Disney ter organizado cuidadosamente a transformação do Mickey Mouse de personagem de desenhos animados para um símbolo. A Disney assegurou que o Mickey se consegue transformar em quase tudo o que o consumidor queira.
MICKEY: O MELHOR VENDEDOR DA DISNEY
O Mickey Mouse tornou-se um grande negócio quase a partir do momento em que fez a sua estreia na curta de animação de Walt Disney “Steamboat Willie”, em 1928. Ao fim de cinco anos, rendia um milhão de euros em vendas de merchandise (equivalente a 17 milhões actualmente). Garry Apgar, historiador de arte de Yale que dedicou anos a estudar as representações culturais do Mickey Mouse, revelou que, nos primeiros anos, esses produtos eram direccionados para crianças e incluíam bonecos de peluche ou comboios.
Tudo mudou depois da Segunda Guerra Mundial, explica Apgar. Nessa altura, a procura de produtos com a cara do Mickey disparou entre adultos. Por um lado, o Mickey já tinha quase duas décadas, o que significava que o primeiro público a ver os desenhos animados tinha agora 30 e 40 anos. Contudo, Disney estava também disposto a transformar o Mickey num símbolo de inocência e da “Americanidade” durante a guerra e nos anos pós-guerra.
O marketing funcionou. Um artigo de 1947 do “New York Times” explicava que os produtos com personagens da Disney geravam 90 milhões de euros em receitas de merchandise para crianças e adultos. Na altura, Disney já tinha criado a Branca de Neve, o Pinóquio, o Dumbo e o Bambi, mas «o Mickey é o que vende melhor», escreveu o repórter do “Times”. Além dos produtos para crianças, muitos dos itens eram para adultos, incluindo rádios, fonógrafos e sacos de água quente. Nesse ano foram vendidos 600 mil relógios Mickey Mouse, em tamanho de adulto e criança.
Em 2004, o Mickey chegou à lista anual de “bilionários fictícios” da “Forbes”, que identifica a rentabilidade de personagens de livros, filmes, programas de televisão e jogos. «Não são só as crianças que adoram o Mickey», lia-se no artigo, apontando que as impressionantes receitas dos últimos anos foram estimuladas em parte por uma vaga de vestuário para adultos. Segundo as palavras de Kay Kamen, o primeiro agente de licenciamento de Walt Disney, que falou ao “Times” em 1947: «Não há qualquer dúvida. O Mickey Mouse foi a maior coisa que aconteceu na história do merchandising.»
NÃO É POSSÍVEL TIRAR OS OLHOS DO RATO
O facto de os adultos gostarem do Mickey Mouse não é um acaso: Walt Disney fez com que fosse quase impossível não gostar.
Ao longo das primeiras duas décadas, Disney foi alterando a personagem para a tornar mais apelativa. Tornou a face e o corpo do Mickey mais redondos e infantis. Os olhos maiores e mais redondos. Foi a isto que Stephen Jay Gould, biólogo evolucionista de Harvard, descreveu como “neotenia”, que se refere à retenção de traços juvenis em animais adultos.
Por que é que isto foi eficaz a chamar a atenção dos adultos?
Alguns cientistas mostraram que os adultos sentem-se mais atraídos por faces infantis, e os nossos olhos tendem a demorar mais tempo nas imagens de bebés. Esse visual também tem mais probabilidade de criar um maior nível de apego, afirmou Gould.
As primeiras versões do Mickey que Disney criou assemelhavam-se mais a um animal. «O Mickey original era mais semelhante a um rato», afirma Apgar. Também tinha comportamentos mais grosseiros e prejudiciais, incluindo fumar.
Nas décadas seguintes, a Disney alterou o Mickey para o tornar mais apropriado para as crianças. Ganhou uma personalidade mais amigável e adquiriu “tiques” da classe média: casa, mulher, carro. Tornou-se brando. Mas ninguém conseguia parar de olhar para ele.
Ou seja, a Disney tinha encontrado uma forma de criar uma personagem que instantaneamente atraía público e mantinha a sua atenção.
O Mickey não foi a única personagem a assumir esses contornos. Noutros primeiros filmes da Disney, o Dumbo, os Sete Anões e o Pinóquio eram todos excessivamente redondos e parecidos com bebés.
Mas poucos tiveram o apelo duradouro do Mickey Mouse. Porque a Disney trabalhou cuidadosamente para passar o Mickey de uma personagem para uma marca global facilmente identificável.
UM MICKEY APROPRIADO PARA QUALQUER OCASIÃO
O Mickey deu à Disney o veículo perfeito para aproveitar a nostalgia dos consumidores e o seu desejo por uma época mais segura. O processo começou a desenrolar-se durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1939, a Disney recebeu um pedido de um esquadrão aéreo do USS Wasp para colocar uns desenhos no avião, de forma a melhorar o moral dos homens.
A partir daí, a Disney trabalhou para assegurar que o Mickey Mouse, juntamente com outras personagens da Disney, estava envolvido no esforço de guerra. Os trabalhadores das fábricas de munições usavam botões com o Mickey. O Tesouro dos EUA imprimiu a personagem em títulos do Tesouro durante os empréstimos de guerra.
A personagem ficou tão ligada aos esforços de guerra que o nome “Mickey Mouse” foi a palavra-passe das tropas norte-americanas que invadiram as praias da Normandia no Dia D. Durante a guerra, a Disney retirou ao Mickey quaisquer antecedentes em particular ou personalidade e, em vez disso, transformou-o num símbolo abstracto.
A genialidade desta abordagem é hoje clara: faz com que seja mais fácil alguém apropriar o Mickey para os seus propósitos, tornando-o um símbolo daquilo que quiserem. Durante a Guerra Fria, na Europa de Leste usava-se o Mickey Mouse como um símbolo do capitalismo, revela Apgar. O termo Mickey Mouse também tem sido usado num sentido pejorativo, para considerar algo amador, trivial ou desvalorizado.
CONTROLAR A MENSAGEM MICKEY PARA TODO O MUNDO
O objectivo da Disney era claramente tornar a personagem conhecida e amada universalmente. Segundo uma pesquisa de mercado, o Mickey Mouse tem um reconhecimento de nome de 97% nosEUA, ainda mais alto que o Pai Natal. Isto acontece em parte porque centenas, se não milhares, de marcas em todo o mundo usam a imagem do Mickey, tornando-a omnipresente.
Enquanto a Disney Company tem controlo sobre a imagem do Mickey nos seus canais, como lojas e parques, a empresa tenta igualmente ter controlo sobre a forma como as marcas o representam quando aceitam a comercialização da sua cara. Para usar oficialmente a imagem do Mickey Mouse, uma marca tem de passar pelos advogados da Disney e pela sua divisão de produtos de consumo. Ao falar com três pessoas que passaram pelo processo e que preferem manter o anonimato por quererem continuar a trabalhar com a Disney, todas afirmaram que a empresa é extremamente sensível em relação a possíveis imagens negativas do Mickey Mouse. Por exemplo, a Disney fez tudo o que podia para assegurar que as marcas não usassem as primeiras imagens do Mickey a beber e a fumar. Contudo, a Disney não consegue controlar tudo, principalmente quando são produtos para adultos.
Por um lado, marcas como a Uniqlo estão simplesmente a aproveitar a nostalgia com T-shirts simples com a cara do Mickey – algo que a maioria das pessoas já viu ou teve em criança. Por outro lado, temos a Gucci. Alessandro Michele, director criativo da Gucci, incorporou a mala Mickey Mouse na sua estética, que tende para o excêntrico, o bizarro e, ocasionalmente, o assustador. No desfile Outono/Inverno 2018 em Milão, os modelos caminharam pela passarele com o que parecia serem cabeças decapitadas. Neste contexto, a cabeça do Mickey Mouse parece um pouco sombria e satírica. Mesmo com todos os cuidados da Disney, a moda pode apropriar-se do Mickey para os seus objectivos.
De forma geral, porém, o simbolismo do Mickey é aquilo que a Disney criou: o do positivismo e da inocência. Talvez seja por isso que os adultos parecem sentir-se atraídos pela personagem em alturas complicadas.