Amnistia Internacional Portugal lembra que a pandemia “exacerbou desigualdades”

Foi a 10 de dezembro de 1948 que a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em pleno Palácio de Chaillot, na cidade de Paris. Hoje é o Dia Internacional dos Direitos Humanos e, com respostas enviadas por e-mail, Paulo Fontes, diretor de comunicação e campanhas da Amnistia Internacional Portugal, enumera as áreas em que mais se fazem sentir os problemas, começando pelo território português.  

«Durante este ano foram vários os problemas de direitos humanos em Portugal», refere. “Tal como no resto do mundo, o tema que mais marcou a nossa sociedade foi também a covid-19 e os desafios trazidos pela pandemia. As desigualdades exacerbaram-se e as pessoas que já estavam em situação de maior vulnerabilidade foram ainda mais afetadas. O direito a uma habitação condigna ganhou ainda mais urgência, em contextos de confinamento, de distanciamento social e de necessidade ainda maior de uma boa higiene sanitária. As pessoas em situação laboral mais precária viram-se ainda com mais incertezas, e geralmente com menos possibilidade de se protegerem em contexto laboral e de teletrabalho. Os refugiados e requerentes de asilo ficaram em situação de ainda maior vulnerabilidade, com maiores dificuldades de encontrar trabalho e de conseguirem prosseguir com a sua integração para a qual têm apenas 18 meses no máximo», escreve Paulo Fontes.

Por outro lado, «com o confinamento e o maior isolamento social, também as mulheres e raparigas vítimas de violência de género e de violência doméstica em específico ficaram mais suscetíveis a sofrerem abusos, e quem os pratica com maior facilidade de esconder e manter a impunidade. A mutilação genital feminina, apesar de ser considerada crime, continua a ser prática, e este ano foi pela primeira vez levado um caso a tribunal».

Mas há também o lado de quem deve fazer prevalecer a lei e nem sempre age desse modo. «Continuam a existir episódios de uso excessivo da força pelas autoridades e o caso de Ihor Homeniuk trouxe uma vez mais a descoberto a necessidade de reformas estruturais nas entidades estatais e forças de segurança», relembra.

«Continuamos a assistir a episódios de discriminação, de racismo e de violência com motivação racista. Este ano assistimos a vários episódios, desde os mais extremos, como o homicídio do ator Bruno Candé, a outros mais mediáticos, como o episódio em que o jogador Marega sai do campo por insultos racistas, até episódios recentes de escrita de frases em paredes de estabelecimentos de ensino. São muitos os episódios e várias as naturezas, mostrando que muito caminho há ainda para fazer em Portugal até que a discriminação e o racismo deixem de ser uma realidade», constata.

Quanto às preocupações que mais perturbam a Amnistia neste campo em termos mundiais, Paulo Fontes acentua: «Um pouco por todo o mundo, o grande tema deste ano foi a covid-19, na crise de saúde pública e na crise social e económica que a acompanha. Tal como referimos para Portugal, também a nível mundial as desigualdades se exacerbaram e todas as pessoas que já estavam em situação de acrescida vulnerabilidade ficaram ainda mais desprotegidas», salienta.

«Situações de conflito como as que se vivem no Iémen, na Síria, na Etiópia, colocam as pessoas em situações de escassa sobrevivência, e neste contexto de pandemia global, ainda em maior fragilidade. Num caso da lusofonia, em Moçambique, vive-se uma grave crise humanitária na província de Cabo Delgado, provocada pelos ataques armados: o número de deslocados já chega aos 500 mil», lamenta.

«Um pouco por todo o mundo, migrantes, refugiados e requerentes de asilo encontram entraves não cumpridores das obrigações dos Estados ao abrigo do Direito Internacional e desadequados às suas necessidades. Na Ásia, centenas de milhares de pessoas Rohingya continuam a sobreviver no limbo, sem quaisquer direitos, e recentemente as autoridades do Bangladesh concluíram um plano para recolocarem centenas dessas pessoas numa ilha remota do Golfo de Bengala, que ainda não foi declarada segura para habitação», destaca.

Mas há mais. «Na Europa propõe-se um novo pacto de migração que não só não traz resposta a muitos dos problemas reais das pessoas que procuram a sua segurança, como tenta ‘varrer o problema’ com acordos feitos em países fora do espaço europeu, descurando-se da sua responsabilidade com a desculpa de uma melhor agilização dos processos em países como a Líbia ou a Turquia. Ativistas, defensores dos direitos humanos e organizações da sociedade civil que ajudam pessoas em perigo no Mediterrâneo arriscam-se a enfrentarem processos e acusações por governos de países europeus, como foi o caso da tripulação do Iuventa, caso mais conhecido porque entre os membros da tripulação se encontra o português Miguel Duarte», recorda.

Paulo Fontes não esquece ainda uma outra dimensão do problema: «Esta criminalização da solidariedade liga-nos também a um outro tema, do discurso de ódio, discurso populista, divisivo e de extremos. Este continuou a crescer, e com a pandemia procurou mesmo ganhar terreno em algumas situações, mas nunca conseguiu trazer respostas efetivas e que fossem solucionadoras para todas as pessoas», indica.

«Também a justiça climática continua a ser tema de grande preocupação. Infelizmente, e ao contrário do que seria expectável, mesmo com a pandemia, o clima e o nosso planeta continuam a degradar-se a ritmos ainda maiores. Este foi o ano em que se registou maior área desflorestada na Amazónia desde 2008 – 11,088km2 entre agosto de 2019 e julho de 2020. É neste contexto que vemos também acontecerem os mais graves e devastadores incêndios na Amazónia, contando-se cerca de 63 mil detetados entre janeiro e 31 de agosto», aponta.

Os protagonistas da defesa e proteção dos direitos humanos também estão sob ameaça: «Ligado com a proteção da floresta e do ambiente, continua a preocupar-nos o perigo constante em que se encontram e a falta de proteção de quem defende os direitos ambientais e os direitos humanos. O sul do continente americano, e em especial a Colômbia, continua a ser a zona do mundo mais perigosa para estas pessoas que defendem o ambiente e as suas comunidades. Frequentemente são atacadas, perseguidas e mesmo mortas. Mas também noutros locais do mundo, os e as defensoras de direitos humanos viram a sua vida em risco e foram detidos ou vítimas da repressão brutal das autoridades. São exemplos recentes os jovens mais conhecidos do movimento pró-democracia que participaram nos protestos pacíficos em Hong Kong em 2019 – destes, já foram presas mais de 10.000 pessoas», diz.

O diretor de comunicação e campanhas da Amnistia Internacional Portugal fala também sobre a frequente cumplicidade de gigantes tecnológicas: «No Vietname, as autoridades continuam a reprimir a liberdade de expressão e a intimidar e perseguir ativistas e defensores de direitos humanos. Para mais, um recente relatório da Amnistia Internacional mostra como as ‘gigantes Big Tech’, em especial o Facebook e a Google, são coniventes com as autoridades e restringem os conteúdos online nas redes sociais que sejam dissidentes ou considerados ataques às autoridades», acusa.

A situação complica-se em função de uma ligação perigosa. «Este é também um dos pontos que não podemos deixar de referir: a relação entre a tecnologia e os direitos humanos. Desde questões ligadas à privacidade de todos e todas nós, até em especial à privacidade e proteção de quem faz uso das tecnologias para o seu ativismo e para a defesa dos direitos humanos que tantas vezes, e em tantos lugares do mundo, veem as suas atividades restringidas, são perseguidos, intimidados, ou mesmo presos ou com a sua segurança colocada em risco por causa das suas atividades online. Por outro lado, a disseminação de informação falsa, desinformação e “notícias falsas”. Mas também o discurso de ódio e discriminatório nas redes sociais. Num relatório recente, a Amnistia Internacional mostrou como as medidas tomadas pelo Twitter para proteger as mulheres da violência e dos abusos online, apesar das repetidas promessas, não são suficientes. O relatório vem no seguimento de uma investigação já de 2018 que demonstrava que mulheres de minorias étnicas ou religiosas, castas marginalizadas, lésbicas, bissexuais ou transgénero, pessoas não-binárias e mulheres com deficiência eram desproporcionalmente alvo de ataques e abusos verbais naquela rede. As empresas tecnológicas têm de compreender a sua responsabilidade e as suas obrigações a todos os níveis, na sociedade e em especial na manutenção e garantia dos direitos humanos sempre e em qualquer ocasião», nota.

«A luta contra o racismo marcou também o ano, com um reacender do movimento Black Lives Matter, depois da morte de George Floyd às mãos de um agente da polícia nos EUA em 25 de maio. O caso de George Floyd chocou o mundo e desencadeou um novo grito de mobilização pela justiça racial e pela reforma da polícia nos Estados Unidos e em todo o planeta. Ocorreram no país milhares de protestos e contraprotestos pacíficos contra o racismo e de teor político. No entanto, os protestos que exigiam o fim da violência policial foram em muitos casos recebidos com mais violência policial. Em resposta a este debate, pedimos (e foram alcançadas algumas) reformas estruturais da polícia, como por exemplo com leis de proibição de utilização do estrangulamento», enumera.

Sobre os efeitos exercidos pela pandemia no que respeita aos direitos humanos, Paulo Fontes repete que «foi talvez o que mais marcou o mundo em termos de direitos humanos, quer de forma direta quer de forma indireta». E junta outros elementos: «Para além daquilo que já referimos, resta-nos ainda recordar a forma como a pandemia foi utilizada em alguns países da Europa, como por exemplo a Hungria, enquanto desculpa para a restrição de liberdades de forma desproporcional e desadequada. Também neste país, o problema de longa data da desigualdade de género no mercado laboral foi agravado, com as mulheres a sofrerem níveis ainda mais altos de insegurança e discriminação. É um exemplo daquilo que referíamos antes, que as pessoas numa qualquer situação de vulnerabilidade ou de discriminação viram-se ainda mais desprotegidas por causa da pandemia», reitera.

E nem a perspetiva de um fator capaz de atenuar os problemas implica apenas motivos de tranquilidade. «A vacina traz novos desafios, que são contíguos a esta ideia. Os países mais ricos compraram já doses da vacina em número suficiente para vacinarem três vezes a sua população. No entanto, em quase 70 países, apenas uma em cada 10 pessoas terá acesso à vacina em 2021. Esta desigualdade ecoa problemas de falta de coordenação e cooperação internacional, mas também a falha em colocar os direitos humanos no centro das respostas, e não o lucro económico. A Amnistia Internacional, em conjunto com outras organizações, está e continuará a apelar a que a tecnologia e a propriedade intelectual sobre as vacinas seja partilhada com a OMS para que possam produzir-se mais doses, de forma célere, com segurança e eficácia. Para que a vacina seja uma esperança para todas as pessoas e não mais um fator divisivo entre quem pode ou não pagar», aconselha.

E conclui: «É também importante que todas as pessoas em todos os países tenham acesso à vacina, que esta não seja apenas para cidadãos nacionais, e independentemente da regularização da sua estadia no país. Como já referimos, em muitos casos pessoas refugiadas encontram-se numa espécie de limbo por falha nas respostas e mecanismos adequados, e não podem ser duplamente discriminados por maus mecanismos.»

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