Massachusetts Institute of Technology: Crie a sua própria sorte
Consideremos a gigante dos cosméticos L’Oréal. Quando a COVID-19 atingiu inesperadamente o mundo, os consumidores mudaram rapidamente para as plataformas online. Muitas empresas não estavam preparadas, mas a L’Oréal adaptou-se rapidamente, aumentando os esforços digitais para oferecer produtos e serviços de beleza online. A utilização da sua tecnologia de prova virtual aumentou por um factor de cinco e as taxas das provas virtuais triplicaram. Esta mudança não só apoiou os consumidores, como também ajudou retalhistas como a Amazon e a Sephora, que adoptaram a tecnologia para as suas vendas de produtos L’Oréal. Além disso, a equipa digital acrescentou uma funcionalidade que permitiu aos influenciadores de beleza organizar eventos de transmissão em directo no próprio website da L’Oréal.
A resposta rápida da L’Oréal pode ser atribuída à sua aquisição, em 2018, da ModiFace, que desenvolve tecnologia avançada de realidade aumentada e realidade virtual para o sector da beleza. Durante a pandemia, a empresa trabalhou com 27 parceiros estratégicos importantes, representando 30 países, para disponibilizar o ModiFace nos seus websites para as marcas L’Oréal aplicáveis, facilitando a integração mediante um kit de desenvolvimento de software. Graças às suas capacidades modulares, a empresa conseguiu agir rapidamente para rentabilizar tendências inesperadas num ambiente altamente incerto.
A nossa pesquisa contínua mostra que o aumento da imprevisibilidade e as condições em rápida mudança exigem que os executivos elaborem estratégias a um nível mais elevado. Em vez de se concentrarem apenas em produtos e mercados, os líderes devem desenvolver a capacidade de descobrir e actuar segundo as opções de uma empresa – o que é conhecido como opcionalidade – e de escalar rapidamente novas iniciativas. Isto permitir-lhes-á ajustarem-se rapidamente a mudanças imprevistas no mercado, como fez a L’Oréal.
Vemos esta fórmula de sucesso face à incerteza a ser aplicada em todos os sectores – a Mastercard nas finanças, a Haier nos electrodomésticos, a Nvidia e a TSMC na concepção e fabrico de chipsets e a Xiaomi na electrónica de consumo. Todas elas seguiram um caminho particular para o crescimento. Modularam as capacidades internas em serviços “plug-and-play”, “mix-and-match”, que os parceiros e clientes podem utilizar para desenvolver novos segmentos de mercado. Até mesmo o recente sucesso da Nvidia na IA pode ser atribuído ao lançamento em 2006 de uma plataforma de computação e respectivas interfaces de programação de aplicações (API) que tornaram viável a utilização das potentes unidades de processamento gráfico da Nvidia para computação de uso geral. Esta iniciativa abriu novos mercados para os designs de chips da empresa numa variedade de aplicações de computação de elevado desempenho.
Por outras palavras, as empresas com melhor desempenho, classificadas por uma pontuação composta a que chamamos indicador de preparação para o futuro, crescem ao partilharem as suas capacidades com parceiros que irão desenvolver novos mercados. Consequentemente, estas empresas podem participar facilmente em vários ecossistemas, são resilientes em tempos difíceis e estão bem posicionadas para captarem oportunidades e subidas inesperadas. Ao tratarem as capacidades como serviços digitais modulares, podem maximizar as suas opções de crescimento e escalar rapidamente. É assim que criam a sua própria sorte.
PASSOS PARA CRIAR A OPCIONALIDADE
Se atingir a opcionalidade e a rapidez é importante, porque é que mais empresas não o fazem? Porque é necessário enfrentar quatro desafios distintos: (1) identificar as capacidades centrais, (2) codificar o conhecimento relevante do processo, (3) decompor sistemas complexos e monolíticos em módulos vagamente acoplados e (4) expor interfaces a estes módulos de modo que outros as aproveitem para desenvolverem novos produtos e serviços. A superação destes desafios inter-relacionados exige que os líderes estejam dispostos a assumir um compromisso e um investimento a longo prazo.
Esse compromisso, por sua vez, exige coragem, porque a fase inicial destas iniciativas consome tempo, pode ser intensiva em recursos e pode não produzir um retorno óbvio, para além de alguns ganhos de produtividade interna. Mas, como observou o teólogo medieval Thomas à Kempis, «quanto mais alto é o edifício, mais profundos devem ser os alicerces». Neste artigo, explicaremos como modularizar as principais capacidades da sua empresa e mostraremos como as empresas líderes conseguiram fazer este trabalho, criando opções e agilidade para si próprias.
IDENTIFICAR AS PRINCIPAIS CAPACIDADES ESTRATÉGICAS
Tudo começa por ser-se claro sobre as suas capacidades estratégicas mais importantes. Para uma empresa de serviços financeiros, isto pode incluir a capacidade de permitir transacções de pagamento seguras e sem problemas para os clientes, o que está directamente relacionado com a sua missão principal. Para os fabricantes de bens de consumo embalados, como a L’Oréal, pode incluir a capacidade de envolver eficazmente os consumidores ou de gerir fornecedores. Na nossa pesquisa, analisamos três dimensões da identificação dessa capacidade estratégica: relevância, frequência e singularidade.
A relevância é definida pela importância de uma capacidade para continuar a criar valor para os clientes. A frequência refere-se à regularidade com que a capacidade é implementada; afinal, se for implementada apenas uma vez por ano, não há grande utilidade em fornecê-la aos parceiros. Singularidade significa que a capacidade deve reflectir o que a empresa faz de melhor – como dá à organização uma vantagem única no mercado em comparação com os concorrentes. Com as capacidades a externalizar identificadas, o passo seguinte é a codificação.
CODIFICAR O CONHECIMENTO DO PROCESSO
Pode parecer simples, mas tomar medidas para decompor e codificar o conhecimento do processo subjacente às capacidades estratégicas é o pré-requisito crucial para separar um processo complexo, muitas vezes monolítico, em componentes mais simples e facilitar a modularização.
Para começar, não comece pelo processo mais secreto e crítico. O seu objectivo é disponibilizar um pequeno conjunto de processos internos aos clientes e parceiros para inovar mais rapidamente. Concentre-se nos processos menos sensíveis. Talvez seja o processo de integração de fornecedores, ou talvez seja o processo para obter a opinião dos clientes durante o desenvolvimento do produto. Estabeleça prioridades para começar a codificar.
Uma empresa química alemã com a qual um de nós trabalhou é conhecida pela sua experiência na concepção molecular e no fornecimento de especialidades químicas para revestimentos. Aperfeiçoar as fórmulas para o resultado desejado é crucial, quer se trate de resistência à chama, textura suave, resistência a riscos ou repelência à água. Os clientes da empresa incluem fabricantes de automóveis, fabricantes de mobiliário, empresas de smartphones e produtores de tintas, todos eles com necessidades diversas e requisitos únicos que mudam rapidamente com base nas exigências dos consumidores.
Dadas as rigorosas normas de segurança no seu sector, a empresa já estava ciente de que precisava de começar a codificar o conhecimento relevante do processo que tendia a residir apenas nos cérebros de especialistas individuais. O lançamento planeado de uma ferramenta digital que permitiria aos clientes experimentar virtualmente receitas químicas deu o impulso necessário para levar a sério a documentação das principais capacidades da empresa. Para isso, era necessário expor o conhecimento crítico do processo por meio de uma plataforma abrangente, pesquisável e de fácil utilização; e para isso, a equipa precisava de começar por codificar esse conhecimento. Entrevistaram especialistas internos e debruçaram-se sobre documentos para pormenorizarem cada molécula, receita, efeito e estimativa de custos. A ferramenta resultante permite aos utilizadores verem como várias combinações de moléculas podem conduzir a novos produtos e até calcular o custo destas novas receitas. A recolha de informações sobre o que os utilizadores estão a investigar com a ferramenta fornece, por sua vez, informações à equipa de I&D sobre as necessidades emergentes dos clientes.
A chave para o sucesso deste projecto de codificação foi o seu âmbito restrito e bem definido. Ao concentrar-se primeiro no conhecimento relacionado com as necessidades mais frequentes dos principais clientes, a equipa transformou o conhecimento do processo da empresa de tácito e bem guardado em explícito e partilhável. Em contraste, vimos grandes empresas ficarem atoladas quando estabeleceram a agenda mais ambiciosa de codificar todo o conhecimento do processo, como um CTO que conhecemos tentou fazer para apoiar uma ampla transformação digital.
DIVIDIR SISTEMAS COMPLEXOS E MONOLÍTICOS EM CAPACIDADES MODULARES
Após a empresa ter identificado as principais capacidades que pode aproveitar com parceiros e clientes e codificado o conhecimento sobre os processos relacionados, o próximo passo é dividir esses processos ou sistemas nos seus elementos componentes. A activação dessas capacidades específicas e atomizadas envolve o recurso aos instrumentos de uma estrutura digital ágil: as API. Estas permitem a modularidade, fornecendo uma forma padrão para as aplicações ou componentes de software comunicarem e trocarem dados ou funcionalidades. Essa modularidade permite mudanças rápidas, como a incorporação de novas funcionalidades a um conjunto de software sem afectar outros componentes.
A Mastercard Labs, a unidade de I&D da empresa global de pagamentos sediada em Dublin, na Irlanda, apercebeu-se da importância das API após algumas lições difíceis. Construiu um gateway de pagamento baseado na cloud que tornou mais fácil para as pequenas empresas aceitarem cartões de crédito, chamado Simplify Commerce, mas descobriu que escalar o produto era impossível porque a infra-estrutura de tecnologia central da empresa era rígida e inflexível. O CEO da Mastercard, Michael Miebach, que desempenhou o cargo de director de produto entre 2016 e 2020, observou que, para um novo produto prosperar, a empresa teria de reformular a estrutura da operação principal.
Por uma feliz coincidência, a Mastercard Labs também ajudou a lançar a Mastercard Developers, que disponibilizou API e outras ferramentas digitais a programadores externos para que integrassem as suas inovações na rede da empresa. «A forma como construímos os produtos foi baseada na API. Era muito mais transparente. Era muito mais modular», referiu Miebach. «Por isso, a nossa capacidade de pegar numa coisa e ligá-la a outra era muito mais fácil do que antes.» Como director de produto, passou anos a alterar a Mastercard internamente para que as API se tornassem as interfaces padrão entre departamentos e processos.
A Mastercard passou por uma reformulação quase completa. Operações como pontuações de fraude, segurança, traduções de tokens e verificação de identidade estavam todas historicamente agrupadas na “Transação”. E embora esta operação central estivesse fortemente acoplada, também deu à Mastercard a sua reputação de grande estabilidade, mantendo tempos de funcionamento de 99,999% (o que não era uma metáfora, mas uma métrica real, conhecida em toda a empresa como “os cinco noves”). Contudo, foi a rigidez destas operações fortemente acopladas que impediu a Mastercard de expandir novas ofertas como a Simplify. Ao reformular o núcleo existente, as capacidades individuais, como a detecção de fraudes, a verificação de saldos e os programas de fidelização, puderam ser configuradas como componentes de “mix and match”, dependendo de novos casos de utilização. Isto facilita agora aos gestores da Mastercard a criação de ofertas modificadas onde e quando forem necessárias. O resultado é uma verdadeira flexibilidade combinatória graças às capacidades modularizadas. Os desafios da Mastercard na modularização de sistemas não são únicos. Os sistemas legados da maioria das empresas, como a versão clássica do SAP, são monólitos fortemente acoplados.
Romper com um monólito pode ser um trabalho longo e lento. Exige paciência e empenho. Miebach lembra-se de participar em reuniões do comité de gestão onde, segundo ele, «sentimos que temos de explicar e defender a razão pela qual as API em que estamos tão empenhados nem sempre parecem estar à altura». Porém, com avaliações regulares e meticulosas e total transparência com a liderança, tanto a quantidade como a qualidade das ofertas baseadas em API aumentaram. A Mastercard acabou por estabelecer o que chama Single Front Door, um balcão único para todos os serviços modulares. As vantagens? Escalonamento flexível à disposição.
Com uma configuração modular, as startups podem misturar e combinar os recursos existentes da Mastercard para cumprirem o ambiente regulatório global. Essa abordagem é fundamental para a Mastercard atender às necessidades do mundo das fintechs. Foi assim que a Revolut, uma empresa de fintech sediada no Reino Unido, aproveitou as capacidades modulares da Mastercard para criar cartões virtuais descartáveis, que mudam de número em cada transacção online para maior protecção contra a fraude. E foi assim que a Grab, equivalente da Uber em Singapura, lançou o seu cartão GrabPay, aceite em qualquer lugar onde exista um cartão Mastercard, permitindo que os utilizadores da aplicação Grab façam transacções online e offline a nível mundial enquanto viajam.
Em Novembro de 2023, a Mastercard recebeu autorização para associar os seus cartões às maiores aplicações de pagamento da China, após anos de limitação aos serviços transfronteiriços. A funcionalidade “pagar como um habitante local” foi rapidamente implementada. Não houve mais desenvolvimento de tecnologia em grande escala. A Mastercard estava pronta sempre que a oportunidade se materializava.
ABRIR O SISTEMA AO ECOSSISTEMA EXTERNO
Como mostra o exemplo da Mastercard, uma abordagem modular pode acelerar a inovação interna. Após estabelecer uma estrutura modular interna por API, o próximo passo para aumentar a opcionalidade é alargar a estrutura aberta para além dos limites da sua empresa. Isto permitirá que ela participe em vários ecossistemas com velocidade e escala.
A Xiaomi, com sede na China, uma empresa de electrónica de consumo de 47 mil milhões de euros que opera mundialmente, seguiu uma estratégia de crescimento baseada em parcerias. As suas ofertas abrangem várias categorias, incluindo telemóveis inteligentes, electrodomésticos e artigos de cuidados pessoais, com quase metade das suas receitas (44,9% em 2023) geradas fora da China.
A vantagem da Xiaomi para entrar em novos mercados reside na sua plataforma de troca digital. Esta é construída em torno da MiUI, a interface de utilizador, ou “skin”, para os seus telemóveis com Android, o centro do ecossistema de produtos da Xiaomi. Aproveitando a MiUI como uma espécie de controlo remoto universal, a empresa começou a lançar produtos que podiam ser ligados e controlados pelos seus telemóveis, como televisores, aparelhos de ar condicionado, purificadores de ar e lâmpadas inteligentes. Mas em vez de aumentar a I&D e as operações para criar outros produtos, a Xiaomi procurou centenas de parceiros que pudessem desenvolver esta nova gama de ofertas. O que a Xiaomi fez essencialmente foi abrir a sua estrutura interna a terceiros.
Uma pequena equipa liderada por um dos co-fundadores, Liu De, toma as decisões finais sobre a contratação de novos parceiros. Mas estas decisões são informadas pelo feedback da activa e empenhada comunidade de utilizadores MiUI, que tem sugerido novas funcionalidades desde que a plataforma era apenas uma interface de telefone. Ao analisar este feedback em grande escala, a Xiaomi compreende quais os produtos ou funcionalidades que os clientes pretendem. Para facilitar a integração de produtos no ecossistema Xiaomi, a empresa fornece aos parceiros um kit de desenvolvimento de software e um conjunto de API aberto.
Esta estratégia foi informada pela crença profunda da Xiaomi em competir como uma “floresta de bambu” e não como “a maior árvore individual”. A MiUI tornou-se um sistema de raízes subterrâneas intrinsecamente ligado que permitiu que novos rebentos de bambu – as novas categorias de produtos – brotassem. Actualmente, a Xiaomi possui um impressionante ecossistema interligado, gerindo mais de 330 empresas com 2700 SKU. Do mesmo modo, o ModiFace da L’Oréal expandiu-se para um conjunto completo de serviços API para implementação por terceiros. Começou com capacidades internas, transformou-se num plugin para a Amazon.com e a Sephora, e foi depois disponibilizado de forma generalizada.
Prosperar na ambiguidade actual exige que as empresas se afastem de uma estrutura rígida e baseada em manuais para uma configuração flexível e modular. No entanto, é necessário pôr a própria casa em ordem antes de poder tirar o máximo partido das vantagens da abertura do ecossistema da sua empresa. Como primeiro passo, identifique um pequeno número de clientes ou parceiros. Ou então, trabalhe com uma pequena, mas ávida, base de fãs, para que o grupo inicial de adoptantes adira à sua visão de crescimento conjunto.
Os pioneiros mostraram-nos o caminho. Essas empresas trocaram os seus silos organizacionais por bases de conhecimento uniformizadas. Derrubaram as suas estruturas, outrora monolíticas, para criarem configurações modulares. Abriram as suas portas, partilhando as suas ferramentas com outros. Usando interfaces digitais como API abertas, reduziram o custo da colaboração. Estes pioneiros oferecem um caminho fundamental para continuar a avançar: tratar as capacidades como serviços. É assim que se maximiza a opcionalidade ao mesmo tempo que se aumenta a velocidade extrema.
Estar preparado para o inesperado ajudá-lo-á a criar a sua própria sorte.
Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 220 de Julho de 2024