Jaba Recordati: “A saúde acrescenta valor às pessoas e à economia de um país”

Este é o momento-chave para repensar uma estratégia para o sector farmacêutico, sem perder de vista o impacto essencial desta na reindustrialização da Europa. Em entrevista à Executive Digest, o CEO da Jaba Recordati Portugal, Nelson Pires, aborda temas como a proposta de revisão da Legislação Farmacêutica na UE, inovação e o papel da Saúde na edificação de uma nova Europa.

A Comissão Europeia apresentou no final de Abril uma proposta de revisão da Legislação Farmacêutica na UE. Qual a sua opinião sobre esta nova estratégia?
Entendo que é um retrocesso gigantesco e um paradoxo brutal face às intenções demonstrada pela UE de reindustrializar a Europa ao nível do fabrico de medicamentos para que a saúde pública não continue dependente de cadeias logísticas offshore e de mercados como a Índia e a China. As propostas da Comissão vão agora ser analisadas e debatidas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho. Espero que pelo menos nestes órgãos haja o bom senso. É o momento-chave para repensar esta falta de estratégia, sem perder de vista o impacto essencial da Indústria Farmacêutica na reindustrialização da Europa.

Considera que esta nova legislação penaliza a Europa?
Esta reforma há muito que é aguardada. Todas as partes interessadas – legisladores, associações de doentes, indústria farmacêutica – estão de acordo quanto à necessidade de proporcionar aos europeus um acesso mais rápido e equitativo aos medicamentos e à inovação terapêutica. Para o conseguir, é essencial que sejam criadas condições dentro do espaço europeu para que a indústria farmacêutica aumente a produção na UE, assegure a disponibilidade de fármacos e recupere um papel cimeiro na inovação. Infelizmente, não foram nesse sentido os sinais dados pela proposta apresentada. A I&D será direccionada para os mercados emergentes onde é mais eficiente e menos oneroso, assim como lançar os medicamentos inovadores apenas nos EUA e Japão. Os dois maiores mercados mundiais, que defendem os direitos da propriedade intelectual e o real valor dos medicamentos. A Europa pode não permitir atingir o breakeven pelo investimento feito. E se isso acontecer acabam as empresas, mas também os empregos, os impostos, os postos de trabalho e os medicamentos inovadores que aumentaram a esperança média de vida em algumas décadas no século XX, permitindo envelhecer de forma saudável!

E em relação à indústria inovadora?
Há 20 anos, a Europa tinha iniciado a sua trajectória de perda da liderança da inovação farmacêutica mundial. Por isso há 25 anos, 50% dos novos tratamentos tinham origem na Europa, percentagem que actualmente ronda os 20%. Porque a disparidade de investimento entre os EUA e a UE na I&D farmacêutica, há 20 anos era de dois mil milhões de euros e agora é de 25 mil milhões de euros. O fosso aumentou mil por cento. Ao longo das décadas, a Europa foi perdendo e deslocalizando parte da sua indústria e está hoje dependente de mercados offshore como os da Índia ou da China. Durante a pandemia percebemos bem as consequências dessa opção. Para descobrir um medicamento inovador que salva e prolonga com qualidade as vidas dos doentes, há cinco a dez mil que ficam pelo caminho e em média, são precisos 15 anos para introduzir um novo medicamento no mercado e mil milhões de euros de investimento. Esta legislação terá portanto um efeito inibidor na atractividade da investigação, desenvolvimento e disponibilização no acesso da população a novos medicamentos. A Europa já tem preços baixíssimos e um mosaico de sistema regulamentares que faz com que os doentes em Portugal tenham acesso apenas dois anos depois do primeiro país da Europa a aprovar. Mas que os Europeus tenham acesso dois a três anos depois dos Americanos. E não se trata de exigência farmacoeconómica mas apenas burocracia, discricionariedade e desorganização.

Na sua opinião, o que pode e deve ser melhorado nesta proposta de revisão?
Quando optam por centrar a nova estratégia farmacêutica na redução do período de protecção da propriedade industrial de oito para seis anos, técnicos e decisores europeus revelam desconhecimento quanto à economia do medicamento e quanto às regras básicas de gestão. A nova legislação penaliza também a Indústria inovadora sempre que um medicamento não esteja disponível «em todos os mercados da UE dois anos após a autorização de comercialização ». Esquece, porém, que alcançar esta meta não depende da indústria farmacêutica, mas de um sistema complexo e imprevisível a cargo de cada um dos 27 Estados-Membros. Portanto passa por eliminar estas duas propostas de imediato. Sob pena de deixarmos de ter produtos inovadores para os doentes Europeus.

Como é que as companhias farmacêuticas podem ser inovadoras?
Os negócios precisam de confiança, a manutenção da estabilidade, a previsibilidade legislativa e a protecção da propriedade industrial são o maior garante de investimento em inovação e desenvolvimento. Se os responsáveis europeus nada fizerem, este continuará a ser desviado para países que oferecem condições favoráveis de forma mais eficiente, ética e menos onerosa. Para além disso, celeridade no processo de aprovação de ensaios clínicos e aprovação de preços que reflictam o real valor da inovação. Mesmo novos modelos de financiamento propostos pela Indústria farmacêutica (como o “pay per performance“). O que não acontece na Europa e muito menos em Portugal.

Considera que a saúde terá um papel crucial na edificação de uma nova Europa?
Claro que sim, não só apenas pelo interesse dos cidadãos, mas também do ponto de vista económico. Em Portugal, os medicamentos desde 1990 evitaram mais de 110 mil mortes. E contribuíram para o aumento da esperança média de vida em 10 anos. Para além da vida das pessoas tem um papel fundamental na economia dum país. Só em Portugal são oito mil postos de trabalho directo e 40 mil indirectos. 85 milhões de euros anuais em I&D (que podiam ser 300m€ ou 400m€, como na Bélgica). Neste momento exporta 1.5 mil milhões de euros (mais do que o vinho) e contribui com 1.7 mil milhões de produção. Portanto, a saúde acrescenta valor às pessoas e à economia de um país. A Europa precisa de inovação no medicamento como factor crucial para este continente continuar a ter um papel relevante!

Na sua visão, como será o futuro da indústria farmacêutica?
Preocupante. Em 1980, a produção industrial representava 27% do PIB Português, agora representa 12%. Exortamos a nossa capacidade industrial e a capacidade de inovar como vimos anteriormente. Os baixos preços e o desrespeito pela propriedade intelectual vai afastar este continente Europeu da posição “charneira” que já teve.

Quais são os desafios do setor Farmacêutico, em tempos de grandes mudanças?
Julgo que a estabilidade legislativa; a manutenção de talento; a competitividade fiscal; o apoio à inovação; a literacia; a transição digital do sistema de saúde; a integração do serviço público, privado e social criando um sistema e não um serviço de saúde; a transparência e rapidez na aprovação da inovação e acessibilidade a todos os cidadãos. Portugal ainda tem uma oportunidade única de dinamizar o mercado de estudos clínicos que geram milhões de euros, como a Bélgica. E, com isso, proporcionar aos doentes acesso a medicamentos inovadores a custo zero. Por outro lado, Portugal tem a oportunidade única na IF de produzir os pequenos lotes para a Europa (até são grandes em Portugal) e especializar-se neste segmento, tornando-se no único fornecedor europeu. Assim como no fabrico de medicamentos biossimilares de elevado valor acrescentado. São muito os desafios para Portugal e para a Europa, mas Portugal tem uma oportunidade única de ser o país “near-shore” que aproveita o fim da globalização que está a acontecer no mundo!

Este artigo faz parte do Caderno Especial “O Mundo da Saúde”, publicado na edição de Junho (n.º 207) da Executive Digest.

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