O paradoxo humano

As pessoas estão perante um mundo que parece fora de controlo. Numa altura em que a agitação económica, social, ambiental e política está a virar quase tudo o que conhecemos de pernas para o ar, as pessoas encontram-se num braço de ferro multidireccional.
Perante a pressão de todas estas forças externas em simultâneo, as suas decisões resumem-se a trocas entre o que querem, o que precisam e as opções disponíveis. Os resultados podem parecer… contraditórios. As pessoas estão a dar prioridade a si próprias… mas querem gerar mudança para os outros. Querem seguir os seus valores… mas não à custa do valor. Estão a resolver os seus problemas sozinhas… mas também querem o apoio das empresas. Este tipo de inconsistências pode não ser novo, mas é cada vez mais considerado normal – e até positivo. De facto, um novo estudo da Accenture revela que até 69% dos consumidores a nível global que admitem comportar-se de forma inconsistente acreditam que os comportamentos paradoxais são tanto humanos como aceitáveis.
As necessidades dos consumidores estão a mudar rapidamente – e as empresas terão de evoluir com a mesma rapidez se quiserem manter-se relevantes.
O excesso de simplificação da segmentação e a subestimação do impacto das forças vitais no comportamento levaram a uma crescente dissonância entre o que as empresas pensam que os seus clientes querem e o que os consumidores dizem querer. Para colmatar essa discrepância, as empresas precisam de ser mais abrangentes e passar de se concentrarem apenas nos hábitos de consumo dos clientes para verem os seus clientes como eles próprios se vêem: multifacetados, complexos e a dar o seu melhor para se adaptarem a circunstâncias de vida imprevisíveis fora do seu controlo. É tempo de as empresas passarem da centralidade no cliente para a centralidade na vida.

UMA CRISE DE RELEVÂNCIA

Os consumidores mostram que se sentem confortáveis sendo multidimensionais, mas muitas empresas continuam a vê-los de uma só forma: como fontes de receita.

As empresas estão concentradas em encontrar formas simples de definir os consumidores e prever os seus comportamentos. Mas a análise da Accenture revela uma grande dissonância entre aquilo que os consumidores dizem mais valorizar nas empresas e aquilo em que as empresas parecem estar a investir.
Esta dissonância é largamente sentida de ambos os lados: até 64% dos consumidores desejam que as empresas respondessem mais rapidamente às suas necessidades em mudança, enquanto até 88% dos executivos pensam que os seus clientes estão a mudar mais rapidamente do que o seu negócio consegue acompanhar.
Este desajustamento coloca as taxas de retenção em risco e restringe os esforços das empresas para atrair novos clientes. Um número crescente de consumidores – até 67%, um salto em relação aos 51% de há um ano atrás – espera que as empresas respondam às suas necessidades em mudança de novas formas. Mais de metade considera que as empresas e as marcas não são tão importantes para elas como costumavam ser, e que o que procuram num produto ou marca é susceptível de mudar, dependendo das circunstâncias.
Embora uma ampla análise deste tipo só capte parcialmente um desafio tão complexo, o que ela indica é mesmo assim urgente: numa altura em que a escolha do consumidor nunca foi tão elevada – e o custo de mudar para uma nova marca nunca foi tão baixo –, uma discrepância tão significativa da relevância como a actual pode ter um grande custo se não for colmatada.
Uma coisa é clara: as antigas regras de relevância são agora obsoletas. Chegou a altura de assumir uma nova estratégia.

FORÇAS VITAIS QUE CAUSAM INSTABILIDADE CONTÍNUA

O mundo tal como o conhecemos hoje é radicalmente diferente do mundo de há dois anos… ou mesmo de há dois meses.

Com o seu impacto impossível de ultrapassar em todas as áreas das nossas vidas, a crise da COVID-19 estimulou as pessoas a reavaliarem o que é importante para elas.
Mas é mais que apenas a pandemia: uma vaga ininterrupta de forças vitais externas – económicas, sociais e mais ainda – está a afectar as decisões do dia-a-dia de forma inevitável.
De facto, até 72% dos consumidores revelam que factores externos como a inflação, os movimentos sociais e as alterações climáticas afectam as suas vidas mais do que no passado.
Os preços ao consumidor estão a disparar às suas taxas mais elevadas em 40 anos, enquanto a guerra na Ucrânia revela consequências a longo prazo para os mercados globais, preços dos alimentos e estabilidade política. Os principais movimentos sociais e culturais em todo o mundo alargam os debates em torno de questões de justiça social, bem como uma maior polarização política e desconfiança crescente no governo e nos media dificultam o caminho para a mudança.
A tecnologia democratizou o acesso à informação, com a Web3 e o metaverso a sugerirem um futuro criativo e dinâmico, mas até 43% dos consumidores consideram que os avanços tecnológicos complicaram as suas vidas tanto quanto as simplificaram.
Com forças externas a exercer mais pressão, e uma lista de considerações práticas e éticas que é cada vez maior, as pessoas enfrentam decisões mais complexas e mais frequentes do que nunca. Para ajudar a tomá-las, recorrem às pessoas em quem mais confiam: elas próprias.

A REDEFINIÇÃO DO PROPÓSITO

Forçados a adaptarem-se a circunstâncias fora do seu controlo e armados com tecnologias que lhes dão mais acesso a conhecimentos especializados do que nunca, os consumidores estão a desenvolver um sentido mais forte de auto-confiança.

Actualmente, até três quartos dos consumidores em todo o mundo afirmam sentir-se qualificados para tomarem decisões-chave nas suas próprias vidas.
Estão mais seguros de si próprios na definição de prioridades e sentem um maior sentido de responsabilidade na tomada de decisões que os beneficiam, as suas famílias e a sociedade. A pesquisa da Accenture indica que este auto-empoderamento está a aumentar.
À medida que as pessoas se tornam mais auto-suficientes, também repensam os valores que as impulsionam. Até dois terços dos consumidores afirmam ter reformulado completamente o que é importante para eles na vida – um aumento de 10 pontos percentuais em relação ao ano anterior. E até 62% dizem que muitas coisas novas são importantes para eles devido ao que se passa a nível global e local.
Contudo, a redefinição de um sentido de propósito no meio de um cenário de forças vitais externas instáveis abre a porta a inconsistências, entre o que acreditamos ou queremos e o que de facto fazemos. Cerca de 61% dos consumidores referem que as suas prioridades continuam a mudar como resultado de tudo o que se passa no mundo. À medida que essas prioridades mudam, o mesmo acontece aos comportamentos de tomada de decisão.
Agora, estão prontos a agir no seu próprio interesse – porque se não o fizerem, quem o fará?

ACEITAR OS PARADOXOS

Num ambiente de mudança perpétua, os consumidores estão a empenhar-se em conciliar os seus valores fundamentais e o seu sentido de propósito com as exigências e os aspectos práticos da vida quotidiana.

Os resultados podem ser confusos e incoerentes:

-Os clientes dão prioridade a si próprios… mas querem gerar mudanças para os outros. Mesmo quando até 66% dos consumidores declaram que a sua tomada de decisões é impulsionada pelas suas próprias necessidades, cerca de 72% sentem que podem ter impacto pessoal no mundo e nas suas comunidades através de comportamentos e escolhas de compra.

-Estão a resolver os seus problemas sozinhos… mas também querem que as empresas os apoiem. Embora se sintam qualificados para tomarem decisões-chave por si próprios, cerca de 67% esperam que as empresas compreendam e respondam às suas necessidades em mudança durante os períodos de disrupção.

-Os clientes dão prioridade aos seus valores… mas não à custa do valor. Mais de metade dos consumidores afirma que a pandemia os motivou a adoptar um estilo de vida mais sustentável, mas até 65% notam que os aumentos de preços os levaram a seleccionar marcas de baixo custo em compras recentes.

-Preocupam-se com o seu impacto… mas não sabem como agir. Quase 70% dos consumidores estão preocupados com o impacto das alterações climáticas nas suas vidas – mas continuam a lutar para fazer da sustentabilidade uma prioridade máxima em relação a outras necessidades.

O efeito concreto é uma aceitação crescente dos paradoxos, em que as pessoas fazem as pazes com as decisões de consumo muitas vezes contraditórias e divergentes que tomam de momento em momento.
Estas decisões paradoxais não são novas – afinal de contas, os seres humanos sempre foram altamente inconsistentes. O que mudou é a crescente frequência e conforto com que são tomadas.
Não é que as pessoas estejam a abandonar os seus valores ao tomarem estas decisões. Compreendem que o perfeito é inimigo do bom e aceitam que encontrar o meio-termo é inevitável quando estão apenas a tentar fazer o seu melhor.
À medida que as pessoas se tornam mais auto-suficientes e mais dispostas a aceitar os paradoxos nas suas próprias decisões, sentem-se mais preparadas para enfrentar futuros desafios.

DA CENTRALIDADE NO CLIENTE À CENTRALIDADE NA VIDA

Em tempos, as empresas optaram por uma abordagem centrada no produto e no desempenho.

Depois mudaram para uma estratégia centrada no cliente, destinada a dar prioridade à experiência. Mas agora, a dinâmica é mais complicada. Até as empresas pararem de simplificar demasiado os seus clientes e começarem a aceitar que são pessoas em constante mudança e multidimensionais, profundamente afectadas por forças externas imprevisíveis, vão dar por si estagnadas. Precisam de se centrar na vida.
As empresas centradas na vida compreendem profundamente as diferentes forças que moldam as vidas dos clientes e oferecem as soluções mais relevantes para esses contextos. As empresas que abraçam uma abordagem centrada na vida – uma abordagem que tem em consideração a humanidade do consumidor, as variáveis que levam a mudanças e as forças vitais imprevisíveis que surgem pelo caminho – estão em melhor posição para prosperarem no futuro.

Para avançar em direcção à centralidade na vida, as empresas precisam de fazer três coisas:

1. Ver os clientes em todo o seu ciclo de vida

Durante anos, as empresas tentaram criar personagens e perfis que classificassem os seus clientes em categorias ordenadas com comportamentos previsíveis. E ficaram aquém do esperado. O estudo da Accenture mostra que à medida que os consumidores se inclinam para a sua auto-suficiência e aceitam a inevitabilidade dos paradoxos, vão quebrando todas as convenções.
Ao concentrarem-se unicamente em modelos de segmentação estática e ao esperarem um trajecto linear do cliente, as empresas arriscam-se a perder os conhecimentos mais profundos subjacentes ao comportamento – e a capacidade de impulsionar novo valor e relações.
O caminho a seguir passa por obter uma visão holística e dinâmica de quem são os clientes e o que motiva o seu comportamento – e tratá-los como mais do que simples compradores.
Um requisito fundamental é repensar os seus dados. Os dados podem revelar informações sobre os consumidores e os seus comportamentos de uma forma revolucionária – mas os números por si só não pintam um quadro completo. As empresas precisam de repensar a forma como recolhem os dados, já que as preocupações com a privacidade e a regulamentação têm impacto na recolha, e o que procuram, sendo que a necessidade de encontrar o lado humano nos números é cada vez maior.

2. Soluções para cenários de mudança

As empresas centradas na vida estão preparadas para se adaptarem e fornecerem opções relevantes através dos seus produtos e serviços, acomodando as forças vitais em mudança a criar impacto nos seus clientes.
Considerem onde se encontram em termos de dois factores-chave: tempo e controlo. A tomada de decisões depende muitas vezes de algo ser necessário agora ou de poder esperar até mais tarde. Considerações baseadas no tempo (curto prazo versus necessidades a longo prazo, horários urgentes versus horários sem restrições) podem mudar de momento para momento, mas moldam sempre a forma como os consumidores fazem as suas escolhas. Também crucial é a sua apetência pelo controlo.
As pessoas têm uma escala móvel de disponibilidade para ouvir os conhecimentos dos outros versus o desejo de assumir o controlo das suas próprias opções. Por vezes querem algo altamente específico; outras vezes valorizam a inspiração e novas ideias.
Satisfazer estas necessidades em mudança significa transformar o paradoxo em produto: se os consumidores estão a aprender a aceitar as próprias inconsistências e a reconhecer os paradoxos na tomada de decisões quotidiana, as empresas podem encontrar formas de dar resposta aos conflitos. Oferecer opções que combinem valores e prioridades de novas formas terá um impacto nos consumidores que estão a reavaliar o que querem e o que precisam.
Em última análise, as empresas precisam de abandonar a ideia de produtos ou serviços one-size-fits-all e concentrar-se em opções flexíveis. Se as necessidades dos clientes estão em constante evolução, as empresas devem estar preparadas para estabelecer uma ligação, independentemente das circunstâncias.

3. Simplificar para a relevância

No meio da pressão das forças vitais e do caos da vida quotidiana, o que os clientes precisam verdadeiramente é simplicidade. São atraídos por tudo o que corta o ruído e torna as suas decisões e as suas vidas mais fáceis. As empresas que querem manter-se relevantes precisam de encontrar formas de abrir o caminho para que os consumidores se possam movimentar facilmente.
Para tal, as empresas podem recorrer a dados, inteligência artificial e inputs de especialistas para ajudar a estabelecer ligações entre as necessidades dos clientes e as forças vitais externas que os influenciam. A utilização de tecnologia combinada com conhecimentos humanos oferece a informação qualitativa e quantitativa necessárias para compreender o que os clientes enfrentam e encontrar soluções criativas.
Mas a simplificação da experiência do consumidor é impossível se as organizações não simplificarem também de uma perspectiva interna. As empresas devem ser implacáveis na definição de prioridades, e dinâmicas e contínuas na forma como evoluem. Isto exige a criação de interoperabilidade em todas as funções orientadas para o cliente (tais como inovação de produtos, marketing, vendas, serviço e comércio), com um conjunto de tecnologias integradas através de plataformas e ecossistemas. As empresas que se concentram na simplificação estão em melhor posição para se orientarem conforme necessário, num ambiente em mudança.

TORNAR A VIDA CENTRAL

A instabilidade global não vai desaparecer facilmente.

Assim, à medida que os consumidores tentam adaptar-se a este contexto, as empresas devem adoptar uma abordagem centrada na vida que os ajude a satisfazer as suas circunstâncias e as suas prioridades em constante mudança.
Ao verem os clientes em todo o seu ciclo de vida, as empresas estarão preparadas para os servir, independentemente das forças externas em jogo.
A expansão das opções, a abordagem dos valores do consumidor e a ligação com eles de novas formas abre a porta ao crescimento e inovação contínuos. Com esta abordagem, as empresas centradas na vida estarão melhor posicionadas para enfrentar o futuro – independentemente dos novos desafios que se avizinham.

Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 198 de Setembro de 2022