Ucrânia: Só falta à NATO ultrapassar uma ‘linha vermelha’. E se o fizer entrará em guerra total com a Rússia, alertam especialistas

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) reafirmou recentemente que não há planos para enviar tropas à Ucrânia. O secretário-geral da Aliança Atlântica, Jens Stoltenberg, esclareceu durante uma visita à Finlândia: “Não vemos uma ameaça militar iminente contra um aliado”.

Este esclarecimento visa pôr fim ao debate crescente, impulsionado pela França, sobre a disposição dos aliados em cruzar a última linha vermelha e enviar soldados ao país em conflito. “Esta ideia de que há uma contagem decrescente para a próxima guerra é errónea. Estamos aqui para prevenir que isso aconteça, como temos feito nos últimos 75 anos”, reforçou Stoltenberg.

Mas será realmente assim? Está mesmo afastada esta possibilidade? Vários especialistas ouvidos pelo El Confidencial avisam que pisar tal ‘linha vermelha’, a única ainda não cruzada pela Nato, seria o inicio de uma “guerra total” entre Moscovo e a Aliança Atlântica.

 A Posição Oficial da NATO

Esta é a posição oficial não só da NATO, mas também da Casa Branca e da maioria dos parceiros transatlânticos, incluindo a Alemanha. No entanto, a discussão está longe de ser encerrada. Desde que o presidente francês, Emmanuel Macron, em fevereiro, abriu a possibilidade de um desdobramento militar europeu na Ucrânia, o receio de que Moscovo possa reverter o rumo da guerra tem crescido em algumas capitais europeias.

Apesar da mensagem de Stoltenberg, muitos consideram que uma eventual derrota da Ucrânia poderia ser o prelúdio de uma ofensiva maior do Kremlin. “Não há consenso nesta fase para enviar tropas no terreno”, afirmou Macron na época. “Mas nada deve ser excluído. Faremos tudo o que for necessário para que a Rússia não vença”.

Por outro lado, a Rússia tem repetidamente insistido que a entrada de tropas da NATO na Ucrânia representaria um ponto de não retorno para uma guerra aberta com o Ocidente. “Dizemos repetidamente que a intervenção direta no terreno de militares de países da NATO representa um perigo enorme. Consideramos isto uma provocação extrema”, afirmou Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, no mês passado.

Divergências entre Aliados

A tensão entre as posições mais agressivas e as mais pacíficas dentro da aliança é constante sob a ameaça russa de escalar o conflito, com o pano de fundo nuclear sempre presente. Este padrão repetiu-se com o envio de armas de precisão, carros de combate, aviões de combate, sistemas antiaéreos e mísseis de longo alcance, e agora, potencialmente, com o envio de tropas. “Há espaço para o debate”, explicou Valentin Chatelet, especialista em segurança do The Atlantic Council. “A mudança de postura da França sobre esta questão foi bem recebida pelos Estados Bálticos e pela Polónia, que também exploraram a possibilidade de enviar o seu próprio contingente militar para apoiar a Ucrânia”, acrescentou, em declarações ao jornal espanhol.

Planos de Formação Militar

Neste momento, discutem-se passos mínimos. Nas últimas semanas, Paris intensificou as conversações com aliados europeus para pôr em marcha um plano que contempla o envio de instrutores militares à Ucrânia. Já estaria em andamento uma espécie de coligação cujo alcance, membros e missão não estão ainda claros ou definidos.

Países como a Lituânia e a Estónia já expressaram publicamente que estariam dispostos a apoiar o plano francês. A Noruega também confirmou “conversações em curso” com Paris sobre um eventual desdobramento de instrutores. Já a Polónia disse que não seria “impensável”.

O cenário mais plausível, segundo fontes próximas do Eliseu, é que Paris envie uma equipa de pessoal militar para avaliar possíveis tarefas de formação. O comandante- das Forças Armadas da Ucrânia, Oleksandr Syrskiy, mencionou que assinou documentos que permitem a visita de instrutores franceses aos centros de formação do país. “Acredito que a determinação da França incentivará outros parceiros a juntarem-se a este ambicioso projeto”, afirmou.

Oposição ao Plano Francês

Apesar dos supostos avanços, a iniciativa francesa enfrenta grandes opositores como Olaf Scholz. O chanceler alemão opôs-se desde o início à ideia de Macron. “Está claro: não haverá tropas terrestres dos países europeus ou da NATO”, afirmou.

Kiev solicitou ajuda aos seus aliados para treinar 150.000 recrutas destinados a reforçar as linhas defensivas. Apesar do esforço coletivo, com mais de 30 países envolvidos, o consenso é que o ritmo de formação é demasiado lento e as aulas, demasiado rápidas, para as exigências do campo de batalha.

No momento, o projeto francês estaria numa fase mais embrionária do que parece, com poucos detalhes concretos materializados. “Ninguém me conseguiu explicar ainda qual seria a grande vantagem de treinar em território ucraniano. Porque tudo o que se faz no território da Ucrânia, teria de ser protegido no território da Ucrânia”, afirmou o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius. “Enviar instrutores não é uma opção para nós”.

Nem todos na Alemanha concordam com a prudência extrema demonstrada pelo governo de Scholz. O deputado Roderich Kiesewetter, dos democratas-cristãos da CDU, propôs a criação de uma “coligação dos dispostos” para enviar efetivos médicos e de engenharia, para tarefas como desminagem de campos de cultivo, transporte de equipamentos, armas ou soldados feridos, e guerra eletrónica. Kiesewetter afirmou que o consenso não é necessário e que os países que desejam enviar militares para missões de apoio devem sentir-se livres para o fazer. “É legal segundo a Carta das Nações Unidas”, sublinhou.

Posição dos EUA

A Casa Branca também tem mostrado relutância em debater o assunto, chegando a pedir aos seus aliados que deixem de falar sobre isso. Contudo, o chefe do Estado-Maior dos EUA, general Charles Q. Brown Jr., afirmou que a chegada de treinadores ocidentais parece inevitável. “Em determinado momento, chegaremos lá. É questão de tempo”, disse. Porém, Brown especificou que agora não seria a melhor decisão, já que implicaria colocar estes preparadores em risco. Kiev poderia ter de decidir entre usar as suas escassas defesas antiaéreas para proteger os estrangeiros ou resguardá-las para infraestruturas críticas ou áreas civis.

A Realidade na na Ucrânia

Atualmente, há algumas dezenas de militares ocidentais presentes na Ucrânia, a maioria destinada à proteção de embaixadas, como a alemã e a britânica, e, segundo fontes diplomáticas, um punhado de observadores, assessores e técnicos no terreno. Antes de 2022, muitos aliados já tinham enviado formadores ao país para lidar com a primeira agressão russa.

“Quando a Rússia invadiu a Crimeia pela primeira vez em 2014, enviámos (EUA) um grande número de tropas para instruir as forças ucranianas e continuámos até 2022, quando recuámos e retiramos as tropas”, disse Evelyn Farkas, ex-alto funcionário do Pentágono para a Ucrânia durante a administração Obama, ao The New York Times. “Não deveria surpreender a ninguém agora, quando há escassez de mão de obra no frente ucraniano, que os membros da NATO e os líderes da aliança considerem como ajudar novamente a partir da retaguarda”, acrescentou.

As ajudas dos aliados vão além do envio de treinadores. Em alguns fóruns, tem sido discutida a ideia de dar apoio de defesa antiaérea ao leste da Ucrânia a partir de países fronteiriços ou até mesmo enviar soldados ocidentais para a retaguarda ucraniana, permitindo a Kiev reforçar suas linhas de combate.

“Agora há discussões com países como os Bálticos, Polónia ou França sobre a possibilidade de enviar tropas, não para lutar, mas para proteger as fronteiras ucranianas com a Bielorrússia ou a parte ocupada da Moldávia (Transnístria), e assim enviar os ucranianos que estão agora patrulhando essas zonas para reforçar a frente”, explica o analista ucraniano Sergej Sumlenny, diretor do European Resilience Initiative Center. “A situação no frente está tão no limite que aumentar ligeiramente, digamos 5% ou 10%, a força de combate pode ser decisivo para a batalha”, acrescentou.

Questões de Segurança e Estratégia Preocupam Aliados

A Rússia utilizou vários passos fronteiriços bielorrussos para lançar a sua invasão em grande escala em fevereiro de 2022 e, desde então, teme-se que Putin use aquele território para abrir novos frentes numa linha de contato já extenuante que se estende por mais de 1.000 quilómetros.

“Os aliados estão cada vez mais conscientes de que, para aliviar a pressão, é necessário apoio no controle fronteiriço da Ucrânia, tanto para dissuadir as operações de inteligência russas como para proteger a fronteira. Isso mostra que se percebe uma probabilidade de que a Rússia abra um novo frente no norte da Ucrânia. Um ataque desde a Bielorrússia representa um cenário plausível para os comandos de defesa da Ucrânia”, explica Chatelet.

A possibilidade de ver militares da NATO a combater em território ucraniano é improvável, mas não pode ser descartada completamente. Alguns especialistas consideram que apenas um cenário extremo poderia forçar os aliados a considerar uma intervenção direta com tropas.

“Se a Rússia conseguir romper as linhas europeias e avançar em Kiev, os Estados Unidos – e vários parceiros europeus – poderão certamente intervir diretamente no território europeu”, termina Thorsten Benner, diretor do Global Public Policy Institute (GPPi).

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