Randstad Insight: O tempo (não) volta para trás

Por José Miguel Leonardo | CEO Randstad Portugal

De um edifício de 10 andares no centro da cidade passou para um apartamento que não ultrapassa os 100 metros quadrados, mas onde a língua inglesa domina e atravessa fronteiras, ligando-se a horas tardias quando as conversas ganham sotaque americano ou aceitando a escuridão como o princípio do dia quando as ligações são feitas literalmente para o outro lado do mundo. 10 andares transformados em apenas um.

O carro está lá fora, não é o único que permanece por vezes dias no mesmo lugar. As viagens diárias que muitas vezes se traduziam numa hora, hoje são passos do quarto para a sala, passando pelo café que não é mais do que a cozinha. Dados anuais da Eurofound demonstram que o mercado de trabalho nacional esteve entre os que saltaram mais expressivamente para teletrabalho como resposta à pandemia: de 4,8% em 2019 para 13,4% no último ano. Mas a obrigatoriedade acabou, até a recomendação foi eliminada, por isso voltemos atrás… ou andemos para a frente.

Mas o que está à frente? O desconhecido. O modelo que tem que ser desenhado, testado e ajustado, sem certezas e por isso parece mais fácil, simplesmente, voltar atrás, até porque foi o contexto que nos levou a mudar e o passado até poderia ser uma história de sucesso. Selos de melhor empresa para trabalhar, programas de team building que reforçam as ligações entre as pessoas e a copa em que nos atropelávamos uns aos outros, promovendo as reuniões informais e cruzando olhares com os colegas, sem necessidade de enviar um link ou fazer agendamento. Um passado em que nem sempre a gestão de tempo parecia eficaz, em que a falta de planeamento levava aos sucessivos atrasos e parecia faltar tempo para trabalhar, para pensar e para criar. A concentração era talvez uma das acções mais complicadas de executar quando vivíamos num ambiente comum, mas vestíamos todos a camisola… Será? Será que o engagement que hoje causa tanta preocupação não era tema no passado porque nos encontrávamos no elevador à hora certa? Ou o tema do engagement tem uma outra dimensão que não é a da presença, mas sim a da relação? E não foi o engagement e a ligação ao propósito das empresas também um dos temas que mais tem sido trabalhado ao longo dos anos, mesmo quando a maioria se via e trabalhava lado a lado na empresa.

Ó tempo volta para trás! Mas o tempo não volta atrás. Olhar para trás não é andar para trás. O que vivemos neste processo, empurrados pelo contexto, mudou-nos a todos, alterou as organizações e as pessoas. Não somos exactamente os mesmos de Março de 2020, mas quem somos? E quem queremos ser?

O mundo do trabalho mudou para sempre. Sabemos que acelerou processos de digitalização, aumentou o mercado do talento mas também a concorrência pelo mesmo. Exigem-se novas competências, capacidade de adaptação, o factfullness baseado em dados mas que não se solidifica em verdades absolutas, pelo contrário aceita a volatilidade e vive da agilidade.

As empresas têm de saber quem são e quem querem ser. Desenhar a sua ambição e trilhar um caminho reconhecendo as tendências e colocando as pessoas no centro da equação. A humanização que não é um bloqueio à digitalização, porque a tecnologia é um vento que não se pára com as mãos, nem com o fechar de olhos. É preciso equilibrar, garantir a relevância dos momentos humanos e digitais, focando as decisões na experiência e assumindo as decisões, porque vai ser preciso optar, vai ser preciso decidir.

Num mundo do trabalho em profunda e constante transformação a resposta não está em ser híbrido, remoto ou presencial, a resposta está em compreender a complexidade, em olhar para as competências e expectativas e em ter um plano, uma ambição. A ambição sem desculpas, sem bodes expiatórios, a ambição de quem acredita no valor e na sua proposta de valor, de quem garante a relevância, a sua e a do seu cliente, porque se algo nos ensinou este vírus foi a perceber o que é mais importante e é este valor que devemos não só ambicionar mas também exigir, não tomando a nuvem por Juno, mas querendo sempre mais.

Artigo publicado na revista Executive Digest n.º 187 de Outubro de 2021

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