Randstad Insight: É mentira

Por José Miguel Leonardo | CEO Randstad Portugal

Contribuem para o flagelo das fake news, para a desinformação e criam movimentos antagônicos a sociedades saudáveis. E poderíamos entrar aqui em discussão se são verdadeiras mentiras ou se são apenas vírgulas e frases que se existisse mais espaço de antena precisavam de explicação. Mas estes são argumentos falaciosos de quem não impede desde a raíz, que a verdade seja apenas isso, a verdade, e que não assuma que numa mentira não há qualquer verdade, porque afinal é mentira.

Num momento de eleições e em que a política ganha espaço (e aqui é por bons motivos, porque os números da pandemia acalmam e porque a vacinação segue a bom ritmo) a discussão do programa de investimentos do Governo, do dinheiro da bazuca e das alterações ao código do trabalho ganham protagonismo. Os recados vêm da esquerda e da direita, como já nos habituaram, mas continua (infelizmente como também não é novidade) a partilhar mentiras ou “inverdades” como muitos gostam de dizer, porque ameniza a intensidade do acto de não falar a verdade. Mas não quero amenizar, até porque um país competitivo e atractivo tem de ter a coragem de eliminar bodes expiatórios, desculpas para que seja pequeno e populismos contrários às tendências e às melhores práticas, só porque é fácil falar, é fácil de dizer e de confundir quem ouve.

Comecemos do princípio e começarei as vezes que forem precisas do princípio para que haja um esclarecimento sobre o que é o trabalho temporário. O trabalho temporário é um modelo de contratação tipificado na lei que quando observados determinados requisitos de contexto permite que as empresas recorram às ETT – Empresas de Trabalho Temporário, empresas que têm uma licença para prestar este tipo de serviço. Mas como é prestado este serviço? E aqui é onde entramos na mentira. Se lermos declarações de sonantes nomes da política verificamos que há mesmo quem diga que são as empresas que roubam o salário aos trabalhadores, entendendo- -se nestas declarações que o salário é partilhado entre trabalhador e empresa. Uma afirmação falsa e que revela um profundo desconhecimento do modelo deste regime de contratação. O trabalhador temporário tem de ter exactamente as mesmas condições que qualquer trabalhador que execute a mesma função na empresa. Por condições, entenda-se que são não só todas as ferramentas para a execução da função, como o salário e benefícios que tem de ser igual ao de todos os trabalhadores daquela empresa na mesma categoria profissional. Eu disse e repito, igual. A lei garante a equidade. Qual é o papel da ETT e como ganha dinheiro? A ETT é a entidade patronal do trabalhador, paga o salário e gere todo o processo administrativo ligado por exemplo à medicina do trabalho ou registo de assiduidade e justificação de ausências. A ETT tem uma relação com o trabalhador e com a empresa que presta o serviço sendo remunerada por esse facto e não roubando qualquer percentagem de ordenado. Aqueles que alimentam fantasmas quando confrontados com este modelo, que está na lei e que nunca foi diferente, argumentam que esse valor poderia servir para pagar ordenados mais altos, desvalorizando a gestão do trabalhador temporário como se estas tarefas simplesmente se executassem sozinhas, como ter 100 trabalhadores fosse possível gerir com equipas de cinco pessoas e não compreendendo ou não querendo enquadrar que existe um contexto de natureza temporária que dá origem a esta relação.

Quando não se quer ver fecha-se os olhos e repete-se sempre a mesma informação com uma surdez propositada, que recusa a compreender qual o papel do trabalho temporário no contexto social e económico. Nunca é referido que o perfil do trabalhador temporário português é jovem e/ou com baixas qualificações. Um perfil que tem dificuldade em integrar um mercado de trabalho cada vez mais exigente e necessitado de competências técnicas e digitais. O trabalho temporário facilita a integração destes profissionais através de experiência de trabalho temporárias mas onde adquirem competências, onde desenvolvem o seu talento e a sua aprendizagem. Estes trabalhadores são muitas vezes depois integrados nas empresas onde estiveram temporariamente, ou porque o contexto mudou e deixou de ser temporário para passar a definitivo ou porque a empresa quer reter aquele talento e encontra espaço para esta integração. Mas estes factos não combinam com a história de precariedade que se cola ao trabalho temporário e às ETT, e por isso fica no silêncio de quem a vive e nos artigos de quem já está farto de ouvir imprecisões, mentiras e populismo. Quero com isto dizer que a tão falada precariedade não existe em Portugal? Que não temos salários baixos? Não, infelizmente temos precariedade e temos de uma vez por todas acabar com ela. A precariedade da economia paralela, de dinheiro não declarado que acompanha vencimentos, de ordenados em atraso que não escolhem vínculos contratuais e temos de penalizar de forma exemplar o incumporimento, para que não compense, para que pare de prejudicar a economia e acima de tudo as pessoas. Os salários baixos são uma preocupação que tenho expressado com insistência, o número de pessoas que recebe o salário mínimo, que parece quase médio e a proporção de crescimento dessa mesma média que não acompanha a subida do salário mínimo. Preocupações que nos devem levar a reflectir, que nos devem levar a ter planos estratégicos para aumentar a competitividade e que devem fomentar o diálogo entre empresas, associações, governo e partidos políticos porque ideologias à parte, todos queremos um Portugal melhor.

Não sou político, mas sei que faço parte do ecossistema, de um ecossistema social que só pode mudar e ficar mais forte se tiver a capacidade de se ouvir e de desconstruir utopias e se for exímio no cumprimento da lei e no revelar da verdade, mesmo que ocupe mais caracteres, mesmo que seja menos populista.

Reconhecer a fragilidade do ecossistema não pode ser tentar sair dele, pelo contrário. É falar, dar a conhecer, insistir e votar. Votar sempre porque não podemos desistir, porque a democracia é o melhor dos sistemas e porque temos de ser mais exigentes, começando nós próprios, por fazer a nossa parte.

Este artigo foi publicado na edição de Setembro de 2021 da revista Executive Digest.

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