Precisa ou quer?

Por José Miguel Leonardo
CEO da Randstad Portugal

O que está por detrás desta medida é o travar da economia paralela, colocando o contribuinte como sujeito activo e parte interessada desta identificação de facturas, evitando a não cobrança de impostos. E esta medida terá tido resultados. O Estado arrecada o valor e os contribuintes têm benefícios, que embora seja muito difícil atingir na totalidade, mudou comportamentos. Os portugueses parecem ter esquecido o número do cartão do cidadão, para hoje saberem de olhos fechados o número de contribuinte. A aceitação foi, em alguns casos, mais lenta para os comerciantes que questionavam esta necessidade e quase levavam a mal os contribuintes que pediam a factura, insistindo que esta era uma forma do Estado os controlar. Hoje estas conversas ficaram no passado e embora ainda se utilize o verbo “precisar” em vez do verbo “querer”, esta medida alterou comportamentos que hoje não se aplicam apenas aos sectores com benefícios, porque entrou no hábito dos portugueses pedir a factura de qualquer serviço.

Vale a pena reforçar que esta medida foi muito cirúrgica, porque o Estado sabia claramente onde existiam as piores práticas e foi exactamente nesses sectores que acabou por incidir esta medida: restaurantes, oficinas e cabeleireiros. Mas a transparência fiscal está longe de estar resolvida e muito menos se restringe a esses sectores e ao tema do IVA. Olhemos por exemplo para os salários.

Setembro foi o mês de campanha eleitoral onde a palavra “salário” saiu claramente vencedora. E desta vez ganhou de forma isolada, com maioria e não coligada ao mínimo. Não foi de salário mínimo que se falou. Finalmente deixamos de olhar para os euros e olhamos para as pessoas, finalmente percebemos que mais de 26% da população activa está neste mínimo e que são mesmo muitas as funções em que o valor mínimo, médio e o mais elevado se balizam nos 600. Ou seja, o salário mínimo que era a bandeira de todas as conversas e que em Maio foi o mote de discurso do Dia do Trabalhador reduzindo-se toda a discussão a se passaria para 800 ou para 900, foi finalmente compreendido na sua dimensão. Finalmente percebeu-se que não é um “simples” tema numérico mas que há um problema muito mais estrutural. O salário mínimo deixou de ser mínimo para passar a ser o salário de referência e uma referência que não tem prazo para ser alterada. E assim, na campanha para estas legislativas, finalmente a discussão centrou-se no que tenho avisado nos últimos anos e que em 2016 apresentámos num estudo que explicava o fenómeno da polarização dos salários. Os dados mostram um incremento do salário mínimo nos últimos anos com reflexos na ordem de 1% na subida do salário médio, o que significa que o salário mínimo se aproxima de forma perigosa do salário médio, não impactando na subida das remunerações e criando um fosso cada vez maior entre os que mais ganham e os que menos ganham, perdendo-se o valor médio. Não estou com esta análise a dizer que sou contra a subida do salário mínimo, não se trata disso. O que é importante é perceber que o tema dos salários não se esgota nesta subida e que para Portugal ser competitivo e atractivo para trabalhar é necessário ter uma perspectiva séria sobre as remunerações.

E quando falamos em remunerações a primeira palavra que surge é transparência, ou melhor, a falta dela. Podemos questionar as pessoas sobre a religião, preferências sexuais, política e até clube de futebol, mas salário é um tabu. Ninguém diz exactamente quanto ganha, ninguém sabe com precisão quanto recebe o colega do lado, todos têm a sensação de estar abaixo do mercado ou daquilo que entregam. Mas ninguém sabe. Ninguém diz e só mesmo em entrevistas de emprego é que se pergunta. E neste caso sabemos que a inflação é parte do discurso sempre tendo em vista uma retribuição melhor. Só no Estado existe transparência, transparência legislativa pelo menos, associada ao funcionalismo e longe da meritocracia que os privados tentam implementar.

Mas a transparência dos salários não se restringe ao silêncio. Existe ainda uma nova Economia paralela. Num estudo de 2017 sobre este tema, as funções que não declaravam rendimentos eram caracterizadas essencialmente por trabalhadores por conta própria como empregadas domésticas, canalizadores e jardineiros. Hoje temos uma Economia paralela que podemos apelidar de “Economia criativa” que impacta o tema dos salários. Criativa porque olha para as figuras remuneratórias complementares previstas na Lei e utiliza-as para garantir impacto no salário líquido, mesmo que sejam prestações contínuas que quer trabalhador, quer empresa tenham acordado como parte integrante do salário.

Estes esquemas remuneratórios são conhecidos por todos. Existem mesmo sectores funcionais que vivem desta criatividade e onde o processo de negociação com o trabalhador incide no líquido, porque “não é importante” a forma como está inscrito no recibo, como é taxado aquele valor.

A “Economia criativa” permite à empresa reduzir custos com salários entregando um valor líquido superior ao seu trabalhador. Todos ganham. Todos ganham?… Não, na verdade todos perdemos. O profissional que aceita estes mecanismos reduz a sua protecção social, uma vez que em caso de baixa ou desemprego estes factores variáveis não são considerados. As empresas que concorrem por estes perfis e que cumprem a Lei ou que são menos criativas, não conseguem acompanhar este mercado, perdem a guerra do talento. E por fim perdemos todos. Perdemos porque não existe um aumento real dos salários, porque o Estado recebe menos impostos e porque a transparência fundamental para a atractividade não existe, transformando-nos num País com práticas menos claras e esquemas. Esta é uma forma de corrupção que infelizmente é aceite por todos. Ainda temos uma postura de rebeldia na relação com o Estado, não valorizando as prestações sociais mas exigindo depois aumento de pensões, de subsídios e de outras prestações sociais. Mas se podermos não contribuir e receber mais dinheiro no imediato, vivemos com isso. E sem vergonha. Como prática continuada, como regra em algumas empresas ou como exigência em algumas funções. E todos sabemos do que falo. Quem não viu o recibo de vencimento de motoristas de matérias perigosas em que os complementos salariais eram idênticos todos os meses. Quantas vezes não ouvimos empresas valorizar a nossa legalidade mas não adjudicar propostas, porque preferem arriscar na criatividade, feita por eles ou por terceiros? Porque justificam que a guerra do talento assim os obriga e que não podem ter mais custos com os salários. E todos sabemos. E quando digo todos, somos mesmo todos. Mas fechamos os olhos. Somos muitas vezes coniventes com estas práticas e não as condenamos socialmente. Mas se pararmos para pensar, compreendemos que todos somos prejudicados, ou não?

Não tenho uma solução para o problema dos salários, mas há muito que se pode fazer. Fiscalizar, balizar melhor os benefícios previstos e ser exigente com as empresas e com as pessoas para que não aceitem de ânimo leve a criatividade, porque afinal, o Estado não é um terceiro que podemos enganar. O Estado somos cada um de nós e o resultado de todos juntos.

Artigo publicado na Revista Marketeer n.º 163 de Outubro de 2019

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