“O caminho da burrinha” da justiça Portuguesa
Por Nelson Pires, General Manager da Jaba Recordati
Este é um tema muito caro para mim pois sou jurista de formação; mas como gestor, sou um “Consumidor” regular do edifício da justiça. Ou da falta dela. A nível fiscal, administrativo, criminal, civil, comercial, societário…
Provavelmente a justiça é um dos melhores e dos piores exemplos do nosso país, com consequências sociais e económicas de total e completo impacto. Trata-se de um paradoxo em que não existem responsáveis diretos e evidentes. Mas existem causas e estas estão identificadas.
A separação de poderes é um exemplo positivo notável. Outro, é o número de juizes existentes, pois na maioria dos sistemas judiciais em 2018, apresentavam 10 a 20 juízes por 100 mil habitantes. Portugal tinha 19,3 juízes (exceto T. Constitucional). Ou seja está no quartil superior e é muito idêntico à média Europeia (21). Contabilizaram-se, ainda, 315 advogados por 100 mil habitantes, valor muito superior à média europeia de 120,4. Não temos portanto um problema de quantidade de recursos humanos.
Pelos vistos também não se trata de uma questão de qualidade, pois 55% dos juízes avaliados em 2020 teve nota máxima, segundo o relatório do CSM. Nesse ano foram avaliados 290 juízes e apenas 7 foram classificados como “suficiente” ou “medíocre”. O mesmo acontecendo com o ministério público. Desde 2019 e até ao final de 2021, o Ministério Público avaliou 340 dos seus pares e cerca de 93% dos magistrados avaliados conseguiram uma avaliação acima de “bom”.
Também não é um problema de investimento, pois o caso português é caracterizado como um óptimo exemplo, com um orçamento afeto à Justiça que representava 19.614€ do PIB por habitante, inserindo-se no mesmo patamar (13.000€ a 26.000€) que a Grécia e a Espanha, por exemplo.
Portugal é ainda o país da Europa do Sul a apresentar uma taxa de eficiência acima dos 95%, tendo um número de casos judiciais resolvidos superior aos iniciados. Mas não refere se o número de casos iniciados aumentou ou diminuiu (o que seria importante para aferir a eficiência).
Ainda positivo pode ser considerada a duração média dos processos cíveis e comerciais, que em 2018, era de 229 dias, metade da duração verificada em 2010. Mas a duração é considerada até á data da decisão final (acórdão, sentença ou despacho) na instância respetiva, independentemente do trânsito em julgado. Mas seria importante entender se esta média não se agrava com o recurso, ou se se reduz caso exista acordo preliminar (algo a que os juízes aludem sempre no início dos processos). Mesmo assim existe uma excepção negativa que são os processos administrativos em primeira instância em Portugal, pois no ano de 2019, rondavam os 1000 dias de duração média.
Mas se tudo está tão bem (temos RH suficientes e de alta qualidade; investimento suficiente e tempos de decisão adequados) porque é que a justiça é tão mal vista por alguns setores da sociedade portuguesa?
Julgo que já levantei algumas questões como a insuficiência e alguma subjectividade dos dados atrás apresentados e que podem mascarar o real estado do sistema judicial Português. Seria interessante avaliar o número de processos por juiz e comparar com o benchmark; a duração média até ao trânsito em julgado (retirando da contagem de prazo os acordos prévios); se a taxa de eficiência é causada por maior eficiência real ou diminuição do acesso e portanto do número de processos; ou mesmo o custo médio das taxas de justiça adaptado ao custo médio de vida comparado.
Porque o que conheço como maus exemplos (alguns muito de perto) de casos mais mediáticos e que vivo no dia-a-dia, são processos como o que se arrasta por 15 anos para haver uma decisão final e trânsito em julgado (o que desrespeita totalmente o objectivo de qualquer sistema judicial nos seus valores de segurança e equidade). Exemplos de processos em que os acusados já pagaram mais de 20.000€ de taxas de justiça por causa de custas processuais elevadas e um sem fim de recursos, inclusive alguns que podem ser considerados esquemas dilatórios de litigância de má fé para conseguir a prescrição do processo (criando uma justiça apenas para ricos, afortunados ou inocentes sem qualquer margem de dúvida). Alguns exemplos de falta de organização e gestão, mas não de excesso de garantias.
Ou o caricato da prova testemunhal que se presta vários anos depois de assistir a certos atos, em que a testemunha tem de se recordar com rigor e sem margem de dúvida para os tornar válidos e autênticos perante um tribunal. Que certeza jurídica é que este elemento fundamental pode contribuir para o apuramento da verdade?
Outro mau exemplo é o anacrónico problema da falta de digitalização ou integração de sistemas informáticos que permite um formalismo excessivo e ineficiência processual que não tem solução. Afinal bastava investir no sistema (como no fiscal), uniformizá-lo e garantir a gestão do processo digital.
Mas também não podemos esquecer a incompetência legislativa na construção de um mau edifício normativo (ou inexistência) como é a questão atual dos “metadados”. Esta questão pode inviabilizar qualquer tipo de investigação de crime, nomeadamente o económico.
Acresce tudo isto aos baixos salários praticados aos técnicos da justiça (excluindo aqui os juízes que gozam de um sistema remuneratório específico) que desmotivam os mesmos. Bem sei que só lá trabalha quem quer, mas profissionais desmotivados com um modelo desorganizado, não são eficientes.
As avaliações sempre tão positivas dos atores da justiça, parece-me algo excessivo e corporativista quando “a base da sociedade devia ser a Justiça” (Aristóteles).
E ainda não conseguimos avaliar com rigor como é que este modelo corporativo, egocêntrico e preguiçoso foi impactado pela falta de acesso gerada pela pandemia. Estávamos mal e estamos pior. “Mas melhor que há 30 anos”, dirão alguns. “Mal seria”, respondo eu. Este teste de stress (pandemia) demonstrou a falta de resiliência e inexistência de eficiência do sistema, entendo eu.
Criticar muito e não apresentar soluções é o típico Português. Portanto não vou cometer este erro. Temos de simplificar o edifício legislativo, profissionalizar a gestão dos tribunais, acabar com o corporativismo e egocentrismo da avaliação dos profissionais, aumentar o investimento na digitalização e uniformização do processo, iniciar um modelo “Kaisen” do processo judicial não privando as partes da forma garantística que salvaguarda os direitos das partes, acabar com coragem com “o copy paste” da técnica jurídica e algumas decisões judiciais, garantir que o tribunal de instrução acabe ou seja um recurso excepcional, garantir que o tempo biográfico (das partes) é o mesmo que o tempo da justiça e que não são realidades paralelas desconexas (“justice delayed is justice denied), garantir dados atualizados sobre o estado da justiça e a sua comparação (benchmark) com outros estados de forma a avaliar o nosso funcionamento. Os especialistas terão certamente mais e melhores propostas, mas para mim começávamos com estas. E a justiça muito teria a ganhar!