Haverá matérias-primas sufucientes para a mudança de paradigma energético?

Por Luís Gil, Vice-Presidente do Centro da Biomassa para a Energia

 

Estamos numa fase de transição de paradigma energético, disso já ninguém tem dúvida. E a transição energética será apenas sustentável se o uso dos materiais envolvidos for tomado em linha de conta.

Uma das formas mais evidentes para essa mudança é a eletrificação da economia baseada na produção de energia por via renovável. Os novos conceitos de mobilidade, que passam pela introdução de novos veículos não poluentes, na fase de uso, incorporando várias tecnologias avançadas e integrando uma rede elétrica baseada em energias renováveis, são já uma certeza.

Se no dia a dia, quando ligamos algo a uma tomada elétrica, não sentimos qualquer diferença, no caso da mobilidade elétrica isso acarreta uma mudança de hábitos. E a utilização de novos equipamentos, ou seja, a mudança de veículos com motores de combustão interna baseados em hidrocarbonetos fósseis, para veículos elétricos, nomeadamente a bateria (BEV).

Sabe-se que que a partir de 2035, na União Europeia, os veículos novos terão que ser isentos de emissões, pelo que os fabricantes de automóveis se têm focado na chamada eletromobilidade. No entanto, esta requer uma variedade de matérias-primas, nomeadamente metais e terras raras, algumas das quais apenas disponíveis em quantidades limitadas. Refira-se que, no entanto, há outras vias de redução de emissões na mobilidade que podem não passar pela eletrificação.

Apenas a título de exemplo, saliente-se que um carro elétrico típico incorpora cerca de 8-9 kg de lítio, que é utilizado nas baterias. Mas este não é a única matéria-prima importante para a eletromobilidade. Os motores síncronos de íman permanente contêm vários metais da família das terras raras, que estão na lista das matérias-primas críticas da Comissão Europeia. Um BEV usa 2-3 kg apenas de neodímio (terra rara). São necessários cerca de 70 kg de cobre para um veículo destes, cerca de três vezes o que é necessário para um veículo com motor de combustão. Com o cobalto essa diferença é ainda mais acentuada. Para além do cobalto, níquel, manganês, grafite e terras raras são também usados. E estimava-se, há poucos anos, que em 2040 o parque automóvel para a UE-27 mais UK viesse a atingir 312 milhões de viaturas.

Em termos de lítio, cujas reservas mundiais se prevê serem suficientes, este provém sobretudo do Chile, Austrália, Argentina e China. No entanto, prevê-se que a sua procura aumente cerca de 4 vezes até 2030. Portugal também tem reservas deste metal. No entanto no que se refere ao cobalto, cerca de metade provém do Congo, onde a sua exploração mineira é problemática e prevê-se que as suas reservas durem apenas onze anos. O níquel é outro problema, pois a Rússia é um dos maiores exportadores deste metal. O praseodímio e disprósio (terras raras) usados nos magnetos permanentes dos motores elétricos têm origem quase exclusivamente na China que tem as maiores reservas e produção de materiais processados. A UE tem a China como maior fornecedor de minérios e metais. A China é também responsável pelo fornecimento de cerca de 70% da grafite, outro material crítico, utilizado como suporte condutor do elétrodo das baterias.

Assim, podemos estar a passar de um paradigma de dependência dos países produtores de gás e de petróleo, para outro em que somos dependentes dos donos das reservas de matérias-primas críticas para a eletromobilidade. Ou seja, a produção de energia por via renovável é mais democrática e barata, mas há outro nível de dependência e de perspetiva de custos acrescidos. As novas tecnologias energéticas requerem quantidades significativas e crescentes de matérias-primas/materiais que, nalguns casos são raros, noutros competem com outras aplicações e ainda podem estar associados a problemas geoestratégicos.

Por isso será necessário apostar em tecnologia que reduza de forma drástica o uso deste tipo de materiais críticos ou mesmo que necessite apenas de materiais que sejam abundantes e cuja origem não esteja concentrada geograficamente, os designados “materiais democráticos”. Paralelamente a questão da reciclagem terá oportunidades assinaláveis numa perspetiva de urban mining e de economia circular, mas só daqui a alguns anos começará a ter quantidade suficiente de “material” para reciclar, embora a perspetiva para 2035 seja a de que a reciclagem venha a fornecer cerca de metade das matérias-primas necessárias para a eletromobilidade. Mas, deve ter-se em mente que é muito complexa a reciclagem de produtos nos quais pequenas quantidades de vários metais estão presentes, próximos uns dos outros, ligados em revestimentos ou coberturas, ou presentes como ligas.

E esta discussão foi aqui apenas centrada na eletromobilidade, sendo que poderá ser estendida a outras tecnologias energéticas. Assim, a escolha destas tecnologias não deverá depender apenas da sua “bondade” tecnológica mas também dos materiais de que necessitam e de que matérias-primas dependem.

A energia e os materiais são atualmente dois dos principais focos da Ciência e da Tecnologia nomeadamente devido a preocupações ambientais e de fornecimento. A procura de uma produção de energia mais barata e mais eficiente passa, obviamente, pelo desenvolvimento de novos e inovadores materiais. Aspetos como a avaliação de problemas/riscos nas cadeias de fornecimento dos materiais, sobretudo matérias-primas críticas, e a fiabilidade de distribuição de energia, estão agora no centro das preocupações. Conceitos como a substituição e a reciclagem estão, como referido, na ordem do dia, para a mitigação destes riscos e incertezas.

Por isso, tendo a preocupação de eliminar ou reduzir a dependência externa nesse domínio, deveriam os países, individualmente ou inseridos em uniões geoestratégicas, avaliar previamente quais as matérias-primas de que dispõem dentro da sua área geográfica e, depois, que novas tecnologias energéticas podem utilizar essas matérias-primas/materiais e apostar estrategicamente nas mesmas, mesmo que economicamente à partida possam não ser consideradas tão interessantes. E ainda promover a exploração de recursos endógenos, dentro das suas fronteiras, aplicando naturalmente as melhores regras ambientais.

Assegurar um fornecimento suficiente de matérias-primas/materiais que vá de encontro à procura, é uma necessidade económica, mas que está também relacionada com o modo de vida e o bem-estar das populações. E se há coisa que esta guerra na Ucrânia nos ensinou é que não devemos depender demasiado de terceiros, pois o que parece ser barato pode sair muito caro.

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