As sociedades unipessoais e os deveres do sócio único

Por Ana Raquel Salgado, Dower Law Firm  

A possibilidade de constituição de sociedades unipessoais por uma única pessoa singular, em 1996, veio acompanhada de um regime que tenta acautelar as reservas que existem associadas à unipessoalidade. Assim o regime reúne esforços na tentativa de afastar a possibilidade de o sócio único utilizar o património social para seu proveito pessoal.

O elemento fundamental neste regime das sociedades por quotas unipessoais encontra-se consagrado no artigo 270.º -F do Código das Sociedades Comerciais. Neste é previsto que todos os contratos celebrados entre o sócio único e a sociedade ficam sujeitos a um conjunto de requisitos do qual depende a sua validade, garantindo desta feita a transparência nas relações contratuais estabelecidas e promovendo a tutela dos credores sociais.

Assim, todos os contratos celebrados entre o sócio único e a sociedade têm de servir o objeto social, isto é, devem ser capazes de prosseguir um fim lucrativo. Existem também formalidades que têm obrigatoriamente de ser observadas nestes contratos, devendo os mesmos ser reduzidos a escrito quando para aquele tipo de contrato, a lei não dispuser de uma forma mais exigente. Significa isto que todo e qualquer contrato tem, no mínimo, de observar forma escrita.

Daqui surge ainda a obrigatoriedade de que todos estes contratos celebrados estejam depositados juntamente com o relatório de gestão e dos documentos de prestação de contas na sede da sociedade, podendo a todo o tempo qualquer interessado consultá-los.

Significará isto que, por exemplo, qualquer credor pode, em qualquer momento, dirigir-se à sede social e consultar todos os negócios realizados entre o sócio único e a sociedade.

A preterição destes requisitos significará – pelo menos teoricamente – a nulidade dos negócios jurídicos, responsabilizando ilimitadamente o seu sócio.

Quanto à responsabilização do sócio levanta-se a seguinte questão: a responsabilização ilimitada dar-se-á apenas na medida dos efeitos resultantes do negócio inválido ou a responsabilização ilimitada dá-se ao nível de todas as obrigações societárias, subvertendo-se desta feita o regime da responsabilidade limitada do sócio?

Embora esta seja uma questão que vem a ser debatida a verdade é que se a consequência da preterição, nem que fosse meramente formal, das regras relativas aos contratos celebrados entre a sociedade e sócio único fosse a “transformação” da responsabilidade do sócio em responsabilidade ilimitada estaríamos a promover a criação de sociedade pluripessoais fictícias – tendo sido esta uma das razões da consagração do regime da unipessoalidade.

Por fim, importará referir que o artigo 84.º Código das Sociedades Comerciais consagra também um regime de responsabilização ilimitada do sócio único nos casos em que a sociedade seja declarada insolvente e se verifique que o mesmo em preterição da personalidade jurídica da sociedade utilizou o património societário em seu próprio proveito daqui resultando a mistura do património pessoal e do património social.

Assim, esta norma impõe que o sócio de uma sociedade unipessoal respeite o património societário, não o utilizando como se de património pessoal se tratasse. Quando isto aconteça e o sócio desrespeite a personalidade jurídica da sociedade misturando os negócios pessoais com os negócios societários, dar-se-á a desconsideração da personalidade jurídica, levando o sócio a responder ilimitadamente pelas obrigações da sociedade.

Em suma, podemos dizer que, se por um lado o 270.º F CSC prima pela transparência dos negócios celebrados entre o sócio e a sociedade, o 84.º CSC constitui um verdadeiro mecanismo sancionatório para o sócio único que desrespeite a personalidade jurídica da sociedade ignorando a sua autonomia patrimonial. Assim podemos concluir que os sócios de uma sociedade unipessoal carecem de uma atenção redobrada na celebração e condução dos negócios da sociedade uma vez que lhes incumbem obrigações acrescidas em função da unipessoalidade, sendo este regime o reflexo das necessidades de transparência e tutela dos credores das sociedades unipessoais.

 

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