A dignidade na corrupção

Por Camila Rodrigues, CEO & Founder da Mulheres à Obra

Enquanto o caso Influencer ensombra a nossa democracia, mais uma vez somos confrontados com um fenómeno que teima em repetir-se, com novos protagonistas, mas com enquadramentos semelhantes. Neste contexto, é pertinente olhar para além da “árvore” que constitui este caso particular, e refletir sobre a “floresta” do próprio fenómeno da corrupção, para procurar compreender não só porque ele ocorre, mas sobretudo porque persiste.

A corrupção envolve uma situação em que uma pessoa numa posição de poder recebe uma vantagem indevida em troca da prestação de um serviço. Está frequentemente associada a outras práticas igualmente nocivas, como o nepotismo, fraude, abuso de poder, tráfico de influência, favoritismo, caciquismo, clientelismo, personalismo. Todas estas práticas florescem no terreno fértil dos estados falhados, mas também das democracias de fraca qualidade.

Sobretudo, a corrupção constitui um flagelo social com inúmeros efeitos perversos: redução do crescimento económico e do investimento; diminuição da produtividade; aumento da desconfiança interpessoal e institucional; aumento das desigualdades; perturbação da legitimidade governativa. É um fenómeno que abala o sentimento cívico de uma comunidade, dilui as normas e os valores sociais de reciprocidade, esvazia a justiça, distorce a competição e constitui uma incubadora para o crime. É, portanto, evidente que a corrupção não oferece dignidade sobre perspetiva alguma. A única dignidade reside em não estarmos sequer remotamente associados a ela e é isto que se deve esperar de uma democracia de qualidade.

Mas uma sociedade com alguma permissividade, como é o caso da portuguesa, pode não entender a corrupção desta forma, ainda que tal não seja assumido explicitamente. Na realidade, os comportamentos com ela relacionados acabam por estar embebidos no próprio tecido social e manifestam-se ao nível micro quando procuramos um conhecido no centro de saúde que nos consiga uma consulta com celeridade, ou uma «cunha» que facilite o acesso a uma vaga na escola onde queremos matricular o nosso filho.

Num contexto em que as instituições são pouco responsivas, os procedimentos burocráticos são enlouquecedores e os serviços públicos têm pouca qualidade e carecem de capacidade de resposta face às necessidades dos cidadãos, este tipo de procedimento constitui uma estratégia de sobrevivência em que cada um procura sobrepor-se aos outros mediante o acesso a facilitadores, em vez de se procurar, em conjunto, construir uma sociedade mais justa e equalitária para todos. Não será corrupção, mas não anda muito longe dela.

Assim, o contexto cultural profundo em que nos movemos desempenha um papel fundamental na génese da corrupção. A este propósito, a socióloga italiana Donatella della Porta nota que difusão da corrupção diminui os seus custos, reduzindo tanto o sentimento de culpa como os riscos de perda de prestígio, ao mesmo tempo que aumenta as possibilidades de encontrar parceiros confiáveis ​​para transações corruptas.

Se o contexto cultural em que nos movemos é determinante para a corrupção, se envolve normas e valores fortemente enraizados e partilhados por largos setores da sociedade, percebemos porque é tão difícil combatê-la. Olhando para a realidade nacional, podemos ilustrar esta persistência olhando para os casos mais marcantes dos últimos anos:

  • Caso «Paquetes da Expo», que envolveu o aluguer, por ajuste direto, de navios para alojar visitantes e prestadores de serviços da Expo 98, o que nunca se veio a concretizar de forma significativa;
  • Caso «Tecnoforma», empresa onde Pedro Passos Coelho era consultor e administrador, a qual recebeu fundos públicos de forma suspeita;
  • Caso «Bragaparques», que envolveu a troca dos terrenos do Parque Mayer, pertencentes a esta empresa, com terrenos localizados na antiga Feira Popular, e que teria sido efetuada quando já existia um projeto aprovado para aquele terreno;
  • Caso «Freeport», que terá envolvido pagamentos a José Sócrates para investir no projeto do centro comercial;
  • Caso «Vistos Gold», uma medida problemática que poderia constituir uma via para a corrupção, ao facilitar o branqueamento de capitais, o financiamento do crime organizado e a fuga aos impostos.

É fácil extrair daqui a perceção de que nada está a mudar. De acordo com a Transparência Internacional Portugal, o Índice de Perceção da Corrupção de 2022 revela que os cidadãos portugueses têm uma perceção da prevalência deste fenómeno superior à que é reportada em outros Estados-Membros da  União Europeia e não sentem que a situação tenha vindo a melhorar, antes pelo contrário.

Apesar disso, possuímos hoje instrumentos determinantes para o combate à corrupção, com destaque para a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e o Mecanismo Nacional Anticorrupção. Estes avanços significativos carecem ainda dos recursos necessários para a sua devida implementação e monitorização, mas constituem, apesar de tudo, um avanço assinalável. Falta agora a vontade política para lhes conferir a robustez necessária para combater um fenómeno tão corrosivo para a nossa democracia e que compromete a sua própria essência.

 

 

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