Conheceram-se numa cozinha, como não poderia deixar de ser. Os chefs Marlene Vieira e João Sá são casados, têm uma filha e são sócios. E a isso tudo acrescentam o facto de terem, cada, um restaurante com uma estrela Michelin (o Sála, desde 2024; e o Marlene desde 2025) – caso único no mundo do roteiro gastronómico da Michelin. Mas há mais vida para além das estrelas, concretamente mais três restaurantes geridos pelo casal: dois no Time Out Market e o gastrobar Zunzum, junto ao Terminal de Cruzeiros de Lisboa, onde decorreu esta conversa. Sem jalecas vestidas, para dar a conhecer o lado de gestores destas duas estrelas da cozinha portuguesa.
São chefs reconhecidos, mas também são gestores de uma empresa com cinco restaurantes. Como têm conciliado esses dois “papéis”?
João Sá (JS): Foi a Marlene [Vieira] que fundou a empresa quando abriu o seu restaurante no Time Out Market de Lisboa, há 10 anos. E depois, à medida que fomos abrindo mais restaurantes fizemo-lo sempre através da mesma empresa, que agora é de 50% de cada.
Quantas pessoas gerem?
JS: Com a abertura do segundo restaurante no Time Out Market, somos 100.
E entre os dois quem tem mais espírito de gestor?
JS: É a Marlene. É muito perspicaz com os números. Eu estou a aprender a ser mais empresário. Quando abrimos o restaurante Zunzum (julho de 2020) percebemos que era necessário fazer as coisas com um pouco mais de profissionalismo porque já começava a ser muita gente para gerir. Agora temos duas pessoas a tratar dos recursos humanos e começamos também a trabalhar com softwares de gestão.
Marlene Vieira (MV): Penso que a capacidade de gestão é comum à grande maioria das mulheres. E efetivamente, acho que as mulheres gostam de controlar e gerir o que está a acontecer.

Este crescimento como empresários estava nos planos?
JS: Fomos um bocado empurrados para isso…
MV: … Sim, fomos. Sendo que no início da carreira de cozinheiro há sempre a micro gestão da nossa seção na cozinha, das nossas equipas, a própria profissão leva-nos a isso. Aliás, o que se fala da tensão que existe dentro das cozinhas tem muito a ver com a resposta rápida com que temos de entregar a comida e para isso estamos sempre a arranjar estratégias para sermos mais rápidos e eficazes.
JS: Mas, a certa altura, começamos a lidar com situações em que tem de se perceber de leis de trabalho e de saber como funciona o IRC… se bem que os novos cursos de cozinha já começam a ter alguma coisa de gestão.
MV: Mas nem todos os chefs querem ter um restaurante com o seu nome. O João sempre gostou de fazer as coisas à sua maneira e aos 24 anos teve um restaurante em nome próprio. Comigo foi diferente. Foi uma questão de necessidade porque não existiam oportunidades como mulher-chef.
A conquista da estrela Michelin para a Marlene poderá servir como um exemplo e poderá abrir portas a mais mulheres nesta área?
MV: Acho que sim, sobretudo porque estou mais próxima das pessoas que vêm de um meio onde não há acessibilidade ao dinheiro e ao investimento. Talvez as pessoas que se identifiquem com esse caminho percebem que é possível. Não sou alguém que já tinha as portas abertas, de certa forma eu própria achava que nunca seria possível ter uma empresa ou sequer uma estrela Michelin.
No meio da gestão existe o vosso trabalho como chefs. Como têm conseguido conjugar os dois papéis?
MV: Somos os dois cozinheiros de uma cozinha clássica internacional e não da cozinha do dia a dia. Não vamos romantizar as coisas, não me formei nesse sentido e o João também não. A nossa vontade sempre foi de estarmos numa cozinha de luxo para ter acesso a técnicas novas e a produtos excecionais. Sempre quis trabalhar nos melhores restaurantes do mundo com os melhores chefes. Aliás, saber exatamente o que não queremos é uma característica que partilhamos. E quando surgiu a oportunidade de abrir o primeiro restaurante no Time Out Market não sabíamos nada de gestão, o que era ter um contabilista, um arquiteto, um advogado, um designer, ter alguém para o marketing, etc., e fomos pedindo ajuda.
Cometeram muitos erros?
MV: Sim. Confesso que no primeiro dia em que abri o restaurante no Time Out Market chorei por não ter clientes. Ao fim de um mês percebemos que o menu não era o adequado para o local e mudamos tudo. Tinha uma vitrine com coisas feitas para as pessoas levarem porque inspiramo-nos no mercado de São Miguel, em Madrid. Mas em Portugal não resultou e ao fim de um mês percebemos que tínhamos de fazer outra coisa. Foi muito intenso.
Entretanto, nessa altura engravidei e estava, ao mesmo tempo, no restaurante Avenue a chefiar a cozinha sozinha. O João fechou o G Spot, que era dele, e foi trabalhar para outros o que é sempre difícil. E depois havia um patrão, que eu tinha, e ao mesmo tempo um restaurante a abrir no Mercado. Durante um ano não tive ordenado no restaurante do Time Out Market, porque decidimos pagar aos fornecedores todas as semanas e pagarmos o IVA todos os meses, e por isso nunca retivemos dívidas. Entretanto o restaurante onde eu estava fechou, nasceu a nossa filha e o João foi tomar conta do meu restaurante no Time Out Market. Mas começamos a perceber que havia um limite de faturação e eu sou uma pessoa de objetivos e de perceber como posso chegar até eles. Por isso, fomos definindo pequenos objetivos, revimos o que atrapalhava mais a operação, como podíamos captar mais clientes, etc.
Lembro-me, por exemplo, que fazíamos bolos e os colocávamos na frente da loja para que as pessoas sentissem o cheiro. Fomos aprendendo por tentativa e erro.

Houve alguém que vos inspirou em todo esse caminho?
MV: Julgo que não. Fomos mesmo fazendo o nosso caminho através de tentativas e erros, ir testando coisas e colocando-as em prática. Sabíamos que não queríamos fugir àquilo que é o nosso cariz: o de ter uma cozinha com técnicas mais evoluídas da gastronomia portuguesa. E depois fomo-nos desafiando em determinados momentos.
No Time Out Market tínhamos o restaurante do Henrique Sá Pessoa ao lado do nosso, sempre com filas gigantes… ver aquilo fez-me reagir, até porque sou muito competitiva.
E entre vós, sócios que também são marido e mulher, competem?
MV: Sim. Ele compete mais comigo do que o inverso. Penso que tenho mais facilidade em deixá-lo passar à minha frente do que ele me deixar passar a mim.
JS: Somos muito exigentes um com o outro. Não é que seja uma competição. Há crítica, mas é construtiva.
MV: Mas estas críticas doem mais do que se forem de uma pessoa de fora. Mas sim, há uma certa competição (risos).
No ano em que o Sála ganha a primeira estrela Michelin, a Marlene não ganha. Como lideram com isso?
MV: Houve festa, mas houve choro a seguir. Muito choro e frustração. Eu sabia que estava lá, mas ao mesmo tempo, sabia que faltava qualquer coisa para ter a estrela. Foi a frustração de quem gosta de atingir objetivos e sente que, de alguma maneira, falhou.
O que é que mudou a partir daí, para depois no ano seguinte a estrela chegar ao restaurante Marlene?
MV: Não mudou muito, afinei certas coisas. Mas há coisas que não abdico, não vou pôr as pessoas a trabalhar 10 a 13 horas por dia só porque se diz que tudo tem de ser muito rigoroso. O que mudei? Olhei mais para a minha identidade e fui ainda mais autêntica.
JS: A única coisa que podia fazer era dar o apoio necessário para ela perceber que era uma questão de tempo. Porque sempre lhe disse que era tempo e não capacidade. E disse-lhe que era uma questão de ser mais autêntica. Ao fim de alguns meses percebeu.
MV: Sim, de alguma forma somos influenciados pelas redes sociais e a tentar perceber o que o Guia Michelin procura, e às vezes perdemos-mos a fazer coisas que não somos nós. Se calhar foi isso que aconteceu comigo. Não digo que não tenha havido injustiça da parte do Guia, porque não trabalhei em restaurantes com estrela, e eles ligam a isso.
Recordando a cronologia de aberturas, abriram o Mercado, depois o Sála e quando se preparavam para abrir o Zunzum veio a pandemia…
MV: Sim, estava previsto o Zunzum abrir a 18 de março de 2020 e uns dias antes o País fechou e fomos todos para casa. Só abrimos as portas a 30 de julho.
Como geriram isso?
MV: Eu fugi para a nossa casa no Bombarral com a minha filha (risos).
JS: Dei muita comida a várias instituições, depois a Marlene arrancou o takeaway no Sála.
MV: A certa altura, não quis ficar em casa. As obras do Zunzum não estavam completamente terminadas e não podia abrir, por isso roubei-lhe o restaurante (risos), e fui para o Sála com outro cozinheiro, que tirámos do lay off, e começámos a trabalhar no take-away, nós e uma pessoa do marketing porque nunca deixei de comunicar. Lembro-me que a primeira encomenda foi feita pelo pneumologista Filipe Froes, que na altura aparecia muitas vezes na televisão a falar sobre o covid-19. Ligou-me, disse-me que estava no hospital, nós cozinhámos e fomos levar a comida. Depois os pedidos começaram a crescer chamei uns motoristas de Uber para começar a organizar as entregas. Mas a pandemia foi a maior prova de fogo, de superação e atualmente estamos muito mais preparados para certas coisas. Agora, quando foi o dia do apagão (28 de abril) geri tudo a partir de casa, nem vim para o restaurante. A aprendizagem desse período foi imensa. Abri o Zunzum contra tudo e todos, até contra o João.
JS: Sim, porque esta zona da cidade estava muito vazia na altura.
MV: E ainda continua a ser um desafio, mas foi um grande sucesso quando abriu. Eu vinha servir às mesas e o restaurante estava cheio. Mas pela primeira vez ficámos com dívidas, o que me fez muita confusão.

E como é que conseguiram reagir se foi a primeira vez nessa situação?
MV: Não tive calma, aliás fui parar algumas vezes ao hospital com ataques de pânico, porque sou um bocado obcecada em chegar aos objetivos.
Passada essa fase, decidiram abrir o restaurante de fine dinning.
JS: Sim, abrimos o Marlene em abril de 2022 quando já tínhamos as contas estabilizadas. Nessa altura o Sála já era sustentável, estava cheio, mas não dava para alimentar outras máquinas. E o restaurante do Time Out esteve quase um ano fechado com o covid-19… por isso tivemos que esperar pelo momento certo para abrir.
Em fevereiro deste ano, chegou finalmente a estrela Michelin ao Marlene… Depois disso, notou alguma mudança no perfil dos clientes por causa desse reconhecimento?
MV: Eu tenho mais portugueses no Marlene do que o João no Sála. É, sobretudo, por ser uma figura mais pública. Tive um programa de televisão, escrevi vários livros e as pessoas têm alguma curiosidade. E também tenho clientes que nunca tinham estado num restaurante de fine dinning e estreiam-se no Marlene.
Depois disso, abriram o quinto restaurante em abril: mais um espaço no Time Out Market em nome do João Sá. Como surgiu a oportunidade?
JS: São sempre eles que convidam. Procuravam alguém com estrela Michelin e que já conhecesse o Mercado. Aquela loja específica é complicada, já passaram vários chefs por lá, do Vítor Claro ao Miguel Laffan, do João Rodrigues ao Vincent Farges, que estava lá antes de nós. Mas decidi fazer as coisas diferentes dos restantes, como por exemplo ter a cozinha aberta.
E em termos empresariais, como esperam que a vossa empresa evolua?
JS: Temos de profissionalizar mais a empresa. Ainda nos falta olhar para os dados com mais atenção. Temos de ter alguém que faça esse trabalho, para saber o que se consome e fazer compras mais agregadas para todos os restaurantes. Queremos alguém que olhe para os números, mas com os valores que temos.
Planeiam abrir mais restaurantes? E gostavam que entrassem investidores no capital da empresa?
JS: Gostava de ter o Sála noutro local da cidade, para melhorar as condições de trabalho e ter mais espaço para evoluir. Gostava de ter algo ligado aos vinhos e gostava de abrir uma coisa mais casual…
MV: …Vamos abrir, mas ainda não é para já. Possivelmente, o Zunzum noutro sítio e de outra forma. Gostávamos de ter um restaurante que perdure no tempo, mas isso nunca será com um fine dining. E também gostava de fazer algo com pastelaria de qualidade, que quase não há neste país. No fundo, que fosse considerada a melhor pastelaria de Portugal. Já em relação à entrada de investidores, tinha de ser alguém que nos ajudasse a crescer, mas sem nos anular.














