Telemóveis nas escolas: proibir ou moderar? O que dizem os especialistas?

O início do ano letivo foi marcado pela recomendação do Governo para a proibição do uso de telemóveis nas escolas por crianças dos 1.º e 2.º ciclos e ainda para a adoção de medidas que desincentivem a sua utilização, no 3.º ciclo. O debate em torno do tema não é novo e continua a dividir os especialistas e a comunidade escolar.

“As crianças passam mais tempo a viver o corpo na ponta dos dedos do que a mexê-lo na sua totalidade. (…) Hoje, temos escolas silenciosas”, lamentava Carlos Neto, professor catedrático e um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira e do jogo, numa entrevista à DECO PROteste, em 2023. E isso tem consequências, que se estendem para lá do preocupante aumento do sedentarismo e da obesidade infantil. Há um conjunto de experiências que as crianças deixam de viver por estarem presas aos ecrãs: “Os jogos, as brincadeiras, as atividades físicas e sociais, as oportunidades para resolverem conflitos…” Lembrando que a vivência ativa dos espaços exteriores favorece a capacidade de concentração dentro da sala de aula, o especialista sublinha: “O brincar na escola, na comunidade e na família é essencial para a construção emocional, cognitiva, motora e social da criança. O movimento do corpo é o arquiteto do cérebro, não se pode perder esta ideia.”

Estas preocupações têm escala global. Em 2023, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), no seu relatório anual de monitorização da educação, instou os países a reverem as suas orientações sobre a utilização de smartphones em contexto escolar. Além de associar a sua utilização excessiva a um pior desempenho académico e a impactos negativos no bem-estar físico e mental de crianças e jovens, chamou à atenção para o risco do cyberbullying, muitas vezes alimentado por imagens captadas na escola. Este cenário já levou alguns países a agir. A organização estima que um em cada seis esteja a banir os telemóveis das escolas – é o caso de França e dos Países Baixos, por exemplo.

Já em Portugal, que no estudo é citado como um país em que a proibição é “parcial”, são essencialmente as instituições privadas que têm vindo a incluir, nos seus regulamentos, a limitação do uso de telemóveis, nos momentos de pausa. Entre as escolas públicas, tais regras são a exceção, ainda que as recomendações do atual Governo possam vir a alterar este cenário.

Dependência online põe em causa o desenvolvimento da empatia

Não haja ilusões: o mundo digital veio para ficar. “Hoje temos uma socialização mista: todos nos relacionamos com as pessoas online e offline”, sublinha Ivone Patrão, psicóloga clínica e investigadora na área dos comportamentos e da dependência online. “O problema é quando começamos a preferir a socialização online”, refere, salientando que esta não permite desenvolver as competências sociais potenciadas por uma comunicação cara a cara. “O nosso cérebro precisa do toque, do cheiro, do contacto ocular que a tecnologia não permite.”

O tempo passado à frente de ecrãs desempenha, nesta escolha, um importante papel. A Organização Mundial da Saúde recomenda limites diários para essa atividade, nas fases de desenvolvimento iniciais: no primeiro ano de vida, deve ser nulo, aos dois anos, menos de uma hora por dia, e, entre os três e os quatro anos, nunca mais de uma hora. Quando falamos em adolescentes e jovens, a partir das seis horas diárias, refere Ivone Patrão, devem soar os alarmes, pois pode entrar em campo a dependência online. Num estudo conjunto de 2023 da Geração Cordão (projeto de que é coordenadora) e da Associação de Apoio à Vítima, com 344 jovens, entre os 12 e os 30 anos, quase 25% admitiam usar a internet para lazer mais de seis horas por dia. Isso, durante a semana. Ao fim de semana, essa percentagem subia para 30 por cento.

A dependência online, explica a psicóloga, põe em causa uma importante competência: a empatia. “Aqueles que são mais dependentes do mundo online apresentam baixos níveis de empatia”, essencial para a criação de relações próximas e de intimidade. Para o desenvolvimento da empatia, “é essencial que eles falem com o colega do lado”. Considera, por isso, ser urgente que as escolas “apliquem uma fórmula que permita aos alunos viverem um equilíbrio entre o uso do mundo online e do mundo offline”. “Infelizmente, hoje em dia, os intervalos nas nossas escolas não são o espelho desse meio termo”, remata.

Recreio sem telemóvel

No Colégio da Imaculada Conceição, em Viseu, a tentativa de uma busca pela fórmula do equilíbrio começou há cerca de cinco anos e meio. Em entrevista à DECO PROteste, em agosto de 2023, Maria da Conceição Pinto, diretora da instituição com 1.º, 2.º e 3.º ciclos, contava que, quando ali chegou, vinda de uma escola em que não era permitida a utilização de telemóveis nos intervalos, estranhou o que viu. “Os alunos saíam a correr e cada um agarrava o seu telemóvel. Não dialogavam com o colega, não brincavam… Comecei a ver que a relação humana não existia. A relação era com a máquina.” Esta realidade levou-a a questionar a própria missão da escola: “O que eu sentia era que não estávamos a responder àquilo que nos é pedido enquanto educadoras, estávamos a permitir que os nossos alunos fossem pequenas ilhas”, confessa.

Resolveu agir. Com o apoio da restante direção, informou os pais de que, a partir do ano letivo seguinte, os telemóveis ficariam à porta. As reações foram positivas: num universo de 264 alunos, apenas um encarregado de educação mostrou desagrado. Mas até este acabou convencido de que seria a melhor solução. Já os alunos mostraram algum desalento inicial, embora, hoje, a rotina esteja perfeitamente interiorizada: à chegada à escola, os telemóveis são deixados na receção, na caixa da respetiva turma. Excecionalmente, podem ser usados na sala de aula para atividades específicas, sendo, depois, novamente recolhidos. No final do dia, são-lhes devolvidos.

Apesar de os smartphones não terem lugar de honra no colégio, Maria da Conceição considera que o papel da escola não deve esgotar-se neste controlo. Cabe-lhe também “ensinar que as tecnologias são boas, mas que não devem fechar-me em mim mesmo”, conclui.

Acompanhamento é fundamental

Maria frequenta o 3.º ciclo numa escola privada, em Lisboa, onde o uso de telemóveis é proibido há mais de 15 anos. Como a maioria dos adolescentes, tem telemóvel, que usa, sobretudo, para aceder às redes sociais e para “conversar com os amigos”, contou à DECO PROteste. Mas, não tem dúvidas, relacionar-se com eles “é mais fácil cara a cara”. É dessa forma, aliás, que ocupa o tempo no intervalo da escola: “Damos a volta ao recreio a conversar.” Caso os telemóveis não tivessem de ficar dentro das mochilas ao longo do dia, sabe que o cenário seria outro: “Não iríamos conviver. Estaríamos agarrados a eles o tempo todo.”

Desde que teve o primeiro telemóvel, aos 11 anos, que a utilização é supervisionada pelos pais. Sobre os riscos do mundo online, diz: “A forma como usamos e como nos ensinam sobre isso faz a diferença. Quando os meus pais permitiram que usasse redes sociais, falámos sobre isso.”

O acompanhamento parental é um aspeto fundamental. Não só para evitar o acesso a conteúdos desadequados à idade, mas também para a prevenção da dependência, como explica Ivone Patrão. “No início, tem de haver um momento de partilha e de uma supervisão mais apertada – na infância e na adolescência, os pais devem, até, ter acesso às passwords dos filhos.” Só depois desta fase inicial, orientada, há lugar à autonomia, refere, comparando esta aprendizagem com a educação para a segurança rodoviária: “Só deixamos os filhos atravessarem a estrada sozinhos a partir de determinada idade e do momento em que percebemos que têm essa autonomia.”
Proibição ou autorregulação?

Ivone Patrão reconhece a pertinência de eventuais limitações dos telemóveis nas escolas, mas tem reservas quanto à proibição. E dá o exemplo de um desafio que a Geração Cordão lançou aos alunos de várias escolas, para viverem um dia sem telemóveis nos intervalos: “Uns jogaram básquete, outros futebol, uns plantaram, outros montaram uma exposição… enfim, existiram diferentes experiências, e algumas escolas acabaram por adotar um intervalo por dia ou por semana sem a tecnologia. E qual é o conceito que se está, aqui, a trabalhar com os jovens? A autorregulação. É eles sentirem que controlam o seu comportamento”, explica.

Carlos Neto partilha da mesma opinião. É necessário envolver os alunos numa “conversa democrática para estabelecer regras e limites”. E propõe que esta discussão seja acompanhada de uma outra, na sua perspetiva, ainda mais importante: a reconfiguração dos próprios recreios. “Não basta proibir as crianças de utilizar os smartphones, é preciso melhorar os espaços exteriores das escolas, torná-los sedutores e adequados ao seu desenvolvimento. Valorizá-los de um ponto de vista lúdico para que permitam aventura, aprendizagem.”

As premissas em jogo são inúmeras e estão longe de se limitar ao que se passa dentro dos muros da escola. Cabe também às famílias educar pelo exemplo. Como observa Carlos Neto, “há muitas crianças que desejariam dizer aos pais: ‘Larga o telemóvel e brinca comigo.'”

Telemóveis nas escolas: o que está em causa?

O impacto dos telemóveis nas escolas e junto de crianças e jovens dá o mote ao episódio do POD Pensar, o podcast com ideias para consumir da DECO PROTeste, dedicado ao tema. Aurélio Gomes acompanha a conversa entre Carlos Neto, professor catedrático emérito da Faculdade de Motricidade Humana e um dos maiores especialistas mundiais na brincadeira e no jogo; Laura Sanches, psicóloga clínica e especialista em aconselhamento parental; e Mónica Pereira, professora de ioga para crianças e autora da petição pública “Viver o recreio escolar, sem ecrãs de smartphones”.

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