Setenta e duas horas: era o tempo que bastava para um fenómeno natural conduzir o Mundo de volta à Idade Média

Setenta e duas horas. Este é o tempo que levaria a ‘mãe’ de todas as tempestades solares a destruir a civilização humana, de acordo com diversos especialistas consultados pelo jornal espanhol ‘El Confidencial’.

Que a atividade solar extrema é um perigo para a humanidade não é uma novidade: basta recordar os efeitos do evento Carrigton, a tempestade solar que atingiu a Terra em 1859 e que destruiu as redes telegráficas de todo o planeta.

Os efeitos de eventos solares extremos estão documentados. E são devastadores, o suficiente para nos levar de volta à Idade Média. “Na verdade, nem mesmo na Idade Média, eu diria até antes”, apontou Sangeetha Abdu Jyothi, professora associada de Ciência da Computação da Universidade da Califórnia, que estudou o efeito que um evento como o Carrington teria na rede de cabos subaquáticos de internet. Hoje, todas as infraestruturas críticas da sociedade, até a distribuição de água potável, depende da eletricidade e da internet. “Se não tivermos isso, basicamente voltaremos à Idade da Pedra. Principalmente com o tipo de densidade populacional que temos nas grandes cidades. “Não consigo nem imaginar o que aconteceria se ocorresse um evento em grande escala.”

Mas John Kappenman, engenheiro americano com décadas de experiência na indústria elétrica, salientou que “sim, claramente haveria desastres de saúde pública, de serviço público, na cadeia de distribuição de alimentos, na indústria farmacêutica, incapacitação do hospitais, dos sistemas de pagamento … Tudo cairá quando houver um impacto na mais importante de todas as infraestruturas, a rede elétrica”, indicou.

Atualmente, os cientistas pensam que a cada poucas centenas de anos teremos um evento ao nível de Carrington – o último ocorreu em julho de 2012, embora longe da Terra. Mas a cada mil anos teremos um eventos entre 10 e 20 vezes mais forte do que o de Carrington, referem os especialistas.

O evento Miyake será ainda pior

Se o impacto global de um evento de Carrington seria devastador por si só, existe outro tipo de tempestade ainda mais poderosa: os eventos de Miyake. Ethan Siegel, astrofísico teórico, acompanhou de perto a situação da rede elétrica global e o perigo que o clima solar extremo representa para a sobrevivência da civilização. Segundo Siegel, o evento de 1859 não é nada comparado a um evento de Miyake.

“Sabemos que o Sol cria eventos de Carrington regularmente”, salientou Siegel, “mas aprendemos recentemente que estes tipos de eventos não são os mais fortes que já ocorreram”. Há mais de um milénio, no ano 774 ou 775, houve um enorme aumento de carbono-14 na atmosfera da Terra, que foi ‘codificado’ em anéis de árvores em todo o mundo. “Depois de uma década a investigar as causas do pico, chegamos à conclusão científica de que a culpa era do Sol”, referiu, “e foi um evento mais de 10 vezes mais poderoso do que o evento Carrington. Na verdade, pode nem ser o evento mais forte que já ocorreu. Porque se olharmos para os núcleos de gelo de há 9.200 anos, houve uma tempestade ainda mais poderosa, que foi um evento de Miyake.”

Durante uma tempestade solar, a erupção acelera os prótons presentes no vento solar da heliosfera — área de influência do Sol, onde estão localizadas a Terra e o restante dos planetas — à velocidade da luz. Esses prótons tornam-se assim partículas de alta energia que também representam um perigo para os humanos e a civilização.

Raimund Muscheler – professor de Ciências Quaternárias e especialista em paleoclima na Universidade de Lund, na Suécia – foi o responsável pela descoberta dos núcleos de gelo referidos por Siegel. De acordo com o especialista, esses prótons são tão perigosos para a infraestrutura eletrónica como o plasma solar é para a infraestrutura elétrica: “Representam um risco direto de radiação.” A eletrónica do satélite pode ser destruída quando há alta radiação, mas também afetaria qualquer pessoa no espaço. “Se se voar perto de áreas polares onde não há proteção dessas partículas de alta energia, ficar-se-ia exposto a altas radiações.”

Segundo Abdu Jyothi, esses prótons também afetariam gravemente todos os dispositivos eletrónicos da Terra, causando danos irreparáveis ​​aos arquivos de dados e causando erros nos chips quando a onda de partículas de alta energia atingisse a superfície da Terra. Os dados armazenados – como as suas informações bancárias, registos de saúde, etc – poderiam ficar corrompidos. “Hoje já sabemos que existem pequenas quantidades de partículas carregadas que conseguem atingir a superfície da Terra, penetrando pela nossa atmosfera e causando a corrupção nos dados armazenados nos data centers”, afirmou. “Em tempos normais, é uma taxa de corrupção muito pequena. Mas com um evento de grande escala, poderia ser muito maior. Poderíamos perder todos os dados em todo o mundo e isso poderia ser um evento devastador.”

Mas a perda de dados seria irrelevante para o que aconteceria imediatamente depois.

“Devido à interligação de infraestruturas críticas na sociedade moderna, o impacto pode ir além da perturbação dos sistemas técnicos existentes e levar a perturbações socio-económicas colaterais a curto e longo prazo”, indicou a Academia Nacional de Ciências dos EUA.

“Os efeitos colaterais de uma perturbação a longo prazo incluiriam provavelmente, por exemplo, a perturbação dos transportes, comunicações, sistemas bancários e financeiros e serviços governamentais; a interrupção da distribuição de água potável devido à paragem de bombas e a perda de alimentos perecíveis e medicamentos por falta de refrigeração. A perda de serviços resultante durante um período de tempo significativo, mesmo numa região do país, pode afetar toda a nação e também ter impactos internacionais.”

A nível planetário, tudo isto seria muito mais grave. A nível humano, a taxa de mortalidade dispararia a nível mundial devido à falta de hospitais modernos e ao colapso da indústria farmacêutica. Nos primeiros dias, todas as pessoas cuja sobrevivência dependia da respiração assistida ou de qualquer outro sistema elétrico morreriam irremediavelmente. Só durante os primeiros meses, centenas de milhões de pessoas morreriam de infeções e de fome regional devido à falta de distribuição de medicamentos, alimentos e água potável causada pelo colapso em cascata de absolutamente tudo, graças à destruição da rede elétrica.

De acordo com Siegel, a solução é simplesmente uma questão de dinheiro. Neste momento, estamos à mercê da nossa própria estrela, mas a indústria ignora este perigo por uma razão simples: o custo. Em vez de investirem na proteção das suas redes contra um evento que irá acontecer mais cedo ou mais tarde, ignoram-no. “Nos Estados Unidos, é praticamente ilegal que uma empresa priorize qualquer coisa que não seja os lucros dos acionistas do próximo trimestre”, salientou. “Há muitas coisas que deveríamos fazer de forma diferente. A escolha ética é óbvia, a escolha do lucro a longo prazo é óbvia, mas as pessoas com dinheiro e poder nos EUA, o país mais rico do planeta, são legalmente obrigadas a não dar prioridade a essas coisas.”

Mas há três ‘soluções’, de acordo com Siegel: uma delas é organizar a infraestrutura elétrica para ser mais resiliente, criando redes locais e regionais que possam atuar de forma independente quando necessário, com fontes de energia menores e sistemas de armazenamento devidamente protegidos. Depois, o uso de capacitores, que são vistos como “de longe a solução mais barata”. São dispositivos que foram inventados e testados no início da década de 1990, projetos abertos para uso livre. “Com base em alguns dos fornecedores que entraram no mercado nos últimos anos, custaria cerca de mil milhões de dólares para implementá-los nos EUA”.

Por último, um sistema de alerta precoce eficaz, com modelos de IA que possam prever cada passagem do Sol com bastante antecedência. “Vendo quão bem e quanto os modelos progrediram apenas nos últimos 10 anos, penso, e isto é pura especulação, penso realmente que em 20 anos seremos muito bons a fazer previsões”, referiu. “Pode ser um pouco otimista demais, mas acho que estamos a fazer grandes progressos no conhecimento da hora de chegada de algumas dessas ejeções coronais massivas.”

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