“Sempre tive uma obsessão por ser livre na criação dos meus vinhos”

Susana Esteban tem um enorme brilho nos seus olhos verdes, mas a cor quase muda quando começa a falar de vinhos, dos seus vinhos. E falar, ou conversar, é coisa que lhe é fácil. A ela que adora o estar à mesa, entre amigos, numa vida que tem sido também feita assim e que, hoje, não desenharia de outra forma.
Susana não tem ninguém na família ligado aos vinhos, mas o facto de ter nascido na Galiza, na região das Rias Baixas, zona de Alvarinho, pode bem ter espoletado o gosto pelos mesmos. Forma-se em Engenharia Química e faz Mestrado em Viticultura e Enologia durante dois anos, na Rioja. E seria numa viagem de Erasmus, em 1995, que se apaixonaria pelo Douro. Só conhece o Vinho do Porto, mas os vinhos do Douro são todo um mundo que lhe interessa descobrir. Estagia na Sandeman, que considera uma experiência única, uma vez que tem o privilégio de estar um mês a acompanhar o provador. Segue-se um mês de vindimas no Douro e a certeza de que tinha de fazer algo aqui era cada vez mais clara. Envia vários currículos, mas nada acontece. Regressa a Espanha e trabalha como directora técnica numa empresa de distribuição de produtos agroquímicos, quando vê um anúncio no jornal a pedir um director de produção para a Quinta do Côtto. Concorre e acaba seleccionada. É aqui que começa a grande aventura. Na altura, o Douro nada tinha a ver com o de hoje, dão-se os primeiros passos na exportação. Susana fica no Côtto três anos até ser convidada para a Quinta do Crasto onde fica mais cinco. Muda-se para Lisboa e as consultadorias no Alentejo começam a fazer parte dos seus dias. Aliás, ainda hoje trabalha com algumas dessas adegas. Mas é no Alto Alentejo que começa a produzir os seus vinhos, depois de procurar as melhores vinhas. É no Alentejo que vai continuar a fazer os seus vinhos, porque é aqui que encontra o terroir que mais a apaixona. E não é por acaso que o seu topo de gama se chama PROCURA. Até porque ela própria continua à procura, de fazer mais, de fazer diferente. Ela, Susana Esteban, que só imagina que quando a velhice chegar continue a acontecer assim… no meio de uma qualquer vinha.

«Não tenho uma explicação lógica sobre o porquê de querer ser enóloga. Sabia que não queria estar fechada num escritório, mas, sim, trabalhar em algo ligado à agricultura ou ao campo. Nasci e cresci em Tui, na Galiza, uma cidade pequena, e a casa dos meus pais tinha uma pequena horta, galinhas e tudo. Considero-me claustrofóbica e detestava ter um trabalho onde tivesse de estar num escritório. Mesmo hoje é um sacrifício estar fechada num gabinete. Essas memórias de infância marcaram-me bastante. Sempre vivi muito fora de casa, na rua. O facto de se crescer numa cidade pequena vinca o carácter. Hoje, tenho um apartamento em Lisboa, mas sinto-me muito bem no campo, e sempre adorei receber pessoas em casa.
O meu pai trabalhava num banco em Tui e, pelo facto de estarmos na fronteira, sempre fez com que ele tivesse muitos amigos portugueses. Acabou por me ser natural querer trabalhar em Portugal. Sempre me senti muito próxima e tinha amigos que eram como família. Ir a Portugal era mesmo familiar e sentia-me como peixe na água. A minha mãe trabalhava em casa [o irmão é veterinário] e depois abriu uma loja de artesanato.

Aos 18 anos fui estudar Engenharia Química em Santiago de Compostela porque queria ser enóloga. Não consigo explicar por que é que queria tirar este curso. Mesmo em pequena já tinha muita curiosidade com tudo o que estivesse relacionado com gastronomia e até provava vinho às escondidas. Achava as feiras e as provas fascinantes e, então, desde muito nova decidi que ia dedicar a minha vida a fazer vinho. Como tinha muito boas notas a Química e a Matemática, o meu pai disse-me para tirar o curso e depois logo se via. Mas, a meio cheguei a querer desistir, uma tortura. Por isso, no terceiro ano reuni-me com os meus pais e expliquei que não era o que queria. O meu pai só me disse: “Leva o tempo que quiseres, mas vais terminar o curso”. Foi o que fiz. Depois escolhi o Mestrado em Viticultura e Enologia pela Universidade de La Rioja. Também havia em Madrid e Barcelona, mas mais académico e menos prático. Acabou por ser fantástico, havia palestras dadas por enólogos e nas aulas de viticultura até íamos para as vinhas podar. 

Fiquei com a certeza de que era mesmo isso que queria fazer. Um dos meus professores era apaixonado pelo Douro e numa viagem acabei por conhecer a região. Deslumbrada fui estagiar para a Sandeman [quando esta era ainda uma empresa familiar] e foi aí que tomei contacto com todas as fases da produção do vinho, a começar pelo ritual das vindimas no Douro. Fiquei impressionada com a região mas, quando terminei o estágio, regressei a Espanha. Decidi que iria voltar ao Douro e enviei muitos currículos, mas ninguém me chamava. Até que um dia concorri a um anúncio da Quinta do Côtto, de Miguel Champalimaud, que procurava um director de produção. Concorri e fui escolhida. Estávamos em 1999 e só disse aos meus pais quando consegui o trabalho. Recordo-me da minha mãe chorar com medo do IP4. A mudança para o Douro foi difícil. Tinha formação, mas não experiência, ainda por cima numa região que não era a minha. O que me ajudou foi que nesse mesmo ano uma geração de enólogos foi trabalhar e viver para lá. Estávamos todos a começar a fazer um vinho que nunca ninguém tinha feito. Ninguém sabia nada e lembro-me que o Dirk Niepoort tinha todo o conhecimento e apoiou o nosso crescimento pessoal e profissional. Foi uma aventura muito gira, uma revolução com sangue novo. Gostei muito de trabalhar com o Miguel Champalimaud. Fiquei por lá três anos e, posteriormente, mudei-me para a Quinta do Crasto (da família Roquette).»

A IDA PARA O ALENTEJO
Sentiu que alguma vez podia ter sido posta em causa por ser mulher e jovem num mundo de vinhos? «O Miguel Champalimaud, quando me estava a entrevistar, disse-me que eu tinha dois problemas para vencer neste mundo dos vinhos: ser mulher e espanhola. Ao princípio fiquei chateada, mas depois percebi que o problema não era ele, mas sim o que eu iria enfrentar. O Miguel sempre me apoiou e deu dicas para eu conseguir vencer. Na Quinta do Crasto tive cinco anos incríveis e foi também quando começaram os “Douro Boys” – uma associação informal de cinco produtores do Douro (Quinta do Vallado, Quinta do Vale Meão, Quinta do Crasto, Niepoort e Van Zellers) que, no início deste século, decidiram juntar-se para promover os seus vinhos em conjunto, colocando-os no mapa internacional.
O Crasto ganhava muitos prémios, atraía os melhores jornalistas, estava muito virado para a exportação. Mais do que um vinho concreto foi a experiência, de estarmos sempre a abrir vinhos, a trocar ideias, a ajudar-nos, e de ter estado naquele grupo tão intenso onde todos gostavam muito do que faziam. 

Saí do Douro porque me casei, com uma pessoa de Lisboa e vim para a capital. Depois, decidi começar a trabalhar no Alentejo porque era um sítio mais perto e tornei-me consultora em várias adegas. No início, tinha a ideia de que nunca iria conseguir fazer os vinhos que fazia no Douro. Mas logo na primeira vindima percebi que no Alentejo posso fazer igual ou melhor, é preciso é procurar as vinhas certas. Quando cheguei ao Alentejo afirmei “este é o meu lugar” e procurei vinhas velhas. Encontrei-as na Serra de São Mamede e senti-me completamente identificada – tinha altitude, frescura e granito, que é muito importante para dar frescura aos vinhos. Fui para o Alentejo em 2007 e estive dois anos à procura destas vinhas.
No mesmo período, a Sandra Tavares – que tinha conhecido no Douro – telefonou-me e desafiou-me para fazermos um vinho juntas. Achei uma ideia fantástica e começámos em 2011, altura em que iniciámos o nosso projecto pessoal no Douro e no Alentejo, uma forma de nos mantermos perto apesar de estar fisicamente longe. 

No Alentejo queria castas portuguesas, pois a minha ideia era fazer um vinho branco que pudesse guardar muitos anos e na Serra de São Mamede sabia que iria conseguir. Sempre tive uma obsessão por ser livre na criação dos meus vinhos. Mas nas minhas assessorias faço o que quero até um certo ponto. Começar do nada exige um investimento brutal. Fiz tudo com o meu dinheiro e isso deu-me liberdade para não estar pressionada a fazer algo comercial. Os vinhos são autênticos e isso depois transmite-se. Neste momento divido o meu tempo entre o Alentejo, onde passo alguns dias da semana, e Lisboa, onde tenho um apartamento.»

OS PROJECTOS
«Tenho a minha empresa, mantenho a empresa com a Sandra, outra sociedade com um amigo em Macau e depois sou consultora em várias adegas. É muito importante não nos focarmos só em nós, é preciso saber o que se passa no
mundo.» Como é que se consegue criar vinhos diferentes? «Tem de haver um trabalho conjunto do enólogo e do produtor. Cada vinha é diferente e, por isso, não misturo vinhos. Chego a um projecto novo e sempre tento respeitar a identidade da vinha, para que, depois, os vinhos sejam diferentes, com a sua própria personalidade. Gosto que puxem por mim, sou muito aberta a novas ideias, a fazer coisas diferentes.
E é um pouco por isso que nasce o projecto Sidecar, em que todos os anos desafio um amigo a fazer um vinho na minha adega, em Mora. Partilhar momentos, ideias e experiências com outros enólogos ou pessoas ligadas ao vinho é algo que sempre gostei e incentivei – Dirk Niepoort, Eulogio Pomares ou Filipa Pato são alguns dos nomes que já colaboraram neste projecto. O Sidecar com José Luís Arangude está prestes a ser lançado.»
Mais recentemente, Susana Esteban e o seu amigo de longa data António Menano criaram o Clube Alegrete 1375, um projecto verdadeiramente exclusivo. São vinhos de uma vinha muito velha, de sequeiro, que estava abandonada na Serra de São Mamede, no Alentejo, há muito uma das regiões de eleição de Susana. As vinhas velhas com castas portuguesas de sequeiro, plantadas em altitude em zonas de granito e xisto, a juntar às grandes amplitudes térmicas permitem as maturações lentas que fazem deste um terroir muito especial. «Esta é uma vinha quase perfeita e quanto mais perfeita ela é, menos tenho de intervir.»

Lançou também o Vinyle 2022 em parceria com Emanuel Lassaigne e ainda este ano vai colocar no mercado o seu primeiro espumante, também em parceria com este produtor de Champanhe. O nome Vinyle surge numa homenagem a Lassaigne, uma vez que as barricas eram suas, e pela paixão deste pela música, em particular pelos vinis. «Quase todos os vinhos dele têm nomes de música, ele adora música. Na sua adega há sempre música e é ele que a põe, pode começar com música clássica e acabar com os ABBA, por exemplo. Já fui a festas em que ele era DJ no lançamento dos seus próprios vinhos. Muitas vezes, é através da música que ele se expressa, daí ter escolhido o nome Vinyle para este vinho.»
Já o Special Edition, o vinho mais especial de Susana Esteban, é uma edição única até ao momento e é um dos vinhos nacionais mais aplaudidos pela crítica internacional, como Julia Harding, Jorge Lucki ou Luiz Gutierrez. Sobre ele houve quem dissesse: “Alcançando a perfeição”. «O Special Edition é sem dúvida, o meu vinho mais especial. Só o lanço em anos excepcionais, como as edições especiais. O facto da crítica internacional o reconhecer e lhe e dar notas muito acima da média, deixa-me obviamente muito contente porque é um reconhecimento enorme do meu trabalho.»

Bastante focada no canal restauração e alta restauração, porque os somelliers adoram ter coisas diferentes, dá um exemplo: «O Castelão sempre me surpreendeu pela capacidade de produzir vinhos estruturados e de grande complexidade, mantendo a sua delicadeza e frescura. Todas estas características fazem-me lembrar vinhos da Borgonha, razão pela qual desafiei Dirk Niepoort, grande conhecedor e apreciador dos vinhos da Borgonha, para fazer um castelão “Sem Vergonha”.
Não me queixo como me têm tratado. As pessoas têm estado atentas ao que faço e fui a primeira mulher a ganhar o prémio “Enólogo do Ano” atribuído pela Revista de Vinhos. Adoro Portugal e não mudava nada na minha vida. Não estava aqui se o Miguel Champalimaud não tivesse apostado em mim. O facto de ser uma mulher, num mundo de homens, continua a ter os seus quês. Há um reconhecimento de prestígio e de confiança ao nível dos produtores, mas, a nível rural, as pessoas que trabalham no campo nem sempre aceitam bem. Muitas vezes tenho de mandar o meu enólogo assistente que tem 20 e tal anos, porque as pessoas não estão habituadas a ver uma mulher a dar ordens na vinha. São pessoas já de uma certa idade e é muito difícil mudar mentalidades. Continua a ser um mundo muito masculino e temos de ter jogo de cintura para conseguir lidar com estas situações.»
O que falta aos vinhos portugueses para se afirmarem lá fora? «Não há marca Portugal. Todas as pessoas adoram a gastronomia, os vinhos portugueses e temos castas que ninguém tem. Façam uma campanha de marketing.»
Até lá, e daqui a uns anos, como se imagina Susana? «Imagino-me velhinha a estar na vinha.» 

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