Resíduos nucleares, biberões e microplásticos: fundo dos oceanos é um “Chernobyl em câmara lenta”

As profundezas dos oceanos são há muito tratadas como algo separado do mundo da superfície, como um lugar sombrio povoado por criaturas mais parecidas a alienígenas – talvez em resposta à dificuldade em o estudar.

Foi somente no início do século XIX que se começou a formar uma compreensão científica mais detalhada das profundezas, em parte devido ao crescente alcance das potências coloniais: à medida que as aspirações comerciais e territoriais dos europeus e americanos se expandiam para abranger o globo, cresceu também a necessidade de um conhecimento mais preciso e detalhado do oceano.

O interesse pelas profundezas ‘ganhou asas’ e urgência na década de 1850, quando empresários britânicos e americanos começaram a instalar os primeiros cabos telegráficos submarinos através do Atlântico – os desafios técnicos destas iniciativas exigiam uma compreensão mais detalhada do fundo do oceano. Foi preciso chegar a 1870, quando a expedição ‘Challenger’ circunavegou o globo, na sua pesquisa científica pioneira que a verdadeira extensão do oceano profundo começou a emergir.

No noroeste do Pacífico, onde a Fossa das Marianas mergulha na crosta do planeta, o ‘HMS Challenger’ registou profundidades superiores a 8 mil metros. Talvez ainda mais surpreendente para os cientistas da época tenha sido a descoberta de pequenas conchas – e, portanto, de seres vivos – a mais de 7 mil metros de profundidade.

Desde então, a compreensão científica evoluiu até à descoberta de comunidades prósperas de seres vivos agrupados em redor de fontes hidrotermais no fundo do oceano – aberturas que se formam na crosta terrestre e que permitem que a água do mar entre em contacto com o magma líquido. Na superfície, a água exposta ao magma simplesmente evaporaria, mas nas profundezas da superfície a pressão impede isso. Em vez disso, a água é expelida de volta ao oceano num geiser superaquecido – estes jatos podem exceder 400°C e transportar uma corrente de minerais do manto terrestre para cima: conforme arrefece a água, esses minerais solidificam-se e formam estruturas que podem ter dezenas de metros de altura e crescer até 30 cm por dia.

A primeira fonte hidrotermal foi descoberta em 1977, no Rift de Galápagos, entre o Equador e as Ilhas Galápagos. Desde então, foram identificados mais de 600 campos de fontes, todos repletos de organismos vivos. Tal riqueza de vida deveria ser impossível na escuridão das profundezas do oceano – sem luz solar não há fotossíntese. Mas as criaturas que prosperam em torno das aberturas não utilizam a energia do sol. Em vez disso, dependem de micróbios quimiossintéticos que transformam os químicos em energia.

Isso levantou a questão: se há em vida em tais ambientes, haveria condições para haver vida nos oceanos nas luas geladas como Encélado, na órbita de Saturno. Mas mais importante: o oceano profundo pode não ser um local de morte e esquecimento, mas sim o berço da vida no nosso planeta.

Pensando nisso, muda a forma como imaginamos as profundezas dos oceanos? Provavelmente sim, até porque fica claro que as profundezas do oceano não são um reino estranho, mas estão intimamente ligadas a outras partes do planeta. E como tal deve ser tratado como qualquer outro ponto do globo e não como um ponto conveniente para despejar resíduos que são demasiado perigosos ou caros para serem armazenados em terra.

De acordo com o jornal britânico ‘The Guardian’, nos anos que seguiram às duas Guerras Mundiais, os Governos britânico, americano, soviético, australiano e canadiano enviaram centenas de milhares de toneladas de armas químicas obsoletas para as profundezas em várias partes do globo – chegaram mesmo a afundar navios inteiros carregados de gás mostarda e agentes nervosos como sarin. Esta prática terminou em 1972, depois de centenas de pescadores na Europa e nos Estados Unidos terem sido hospitalizados depois de transportarem para a superfície pedaços solidificados de gás mostarda ou conchas que continham a substância.

Mas há mais: os oceanos guardam nas profundezas têm sido usadas como local de descanso final para grandes quantidades de material nuclear: um estudo de 2019 encontrou pelo menos 18 mil objetos radioativos espalhados no fundo do Oceano Ártico, muitos despejados pela União Soviética. Entre os quais navios como o ‘K-27’, um submarino nuclear movido por um reator experimental afundado em 1982, ou o ‘K-141 Kursk’, no Mar de Barents em 2000, matando as 118 pessoas a bordo e levando o seu reator e combustível para o fundo do mar. Há ainda o ‘K-159’, que se afundou quando era rebocado perto de Murmansk (Rússia), em 2003, com 800 kg de combustível de urânio irradiado a bordo.

De acordo com o chefe da Autoridade de Segurança Nuclear da Noruega, é uma questão de tempo até que os navios comecem a libertar o seu legado tóxico na água – há quem considere a “Chernobyl em câmara lenta no fundo do mar”.

A União Soviética foi quem despejou mais resíduos nucleares no fundo do mar, mas não foi única: entre 1948 e 1982, o Reino Unido despachou quase 70 mil toneladas, acompanhada pelos Estados Unidos, Suíça, Japão e Países Baixos. E embora os tratados internacionais proíbam o despejo de material radioativo no mar, o Governo britânico estuda um plano para eliminar até 750 mil metros cúbicos de resíduos nucleares, incluindo mais de 100 toneladas de plutónio, ao largo de Cumbria, na costa britânica.

O despejo de resíduos nucleares no oceano é apenas uma parte de uma história muito maior de descuido e ganância. Os resíduos humanos na forma de plásticos e outros objetos estão por toda a parte nas profundezas do oceano, um facto que é evidenciado pelo Banco de Dados de Detritos do Mar Profundo da Agência Japonesa para Ciência e Tecnologia Marinha-Terra, que documentou a presença de pneus, redes de pesca, sacos de desporto, manequins, bolas de praia e biberões espalhados pelo fundo do mar, a profundidades de muitos milhares de metros. Em algumas regiões, o número de tais objetos excede 300/km2.

Esta maré de lixo chegou até às partes mais profundas e remotas do oceano: quando o explorador Victor Vescovo chegou ao fundo da Fossa das Marianas em 2019, não só encontrou espécies até então desconhecidas como também um saco de plástico e embalagens de doces. Outra expedição às Marianas pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA em 2016 encontrou uma lata a uma profundidade de 4.947 metros.

Possivelmente mais perturbador, porém, é o crescente acumular de microplásticos nas profundezas dos oceanos. Nas camadas superiores do oceano, os microplásticos invadiram a cadeia alimentar – em algumas partes do Pacífico, existe agora mais plástico do tamanho do zooplâncton do que plâncton, o que significa que animais como as baleias e as aves estão a consumir microplásticos em grandes quantidades, o que conduz à sua desnutrição e a danos em muitos órgãos.

O volume de plástico nas camadas superficiais do oceano é insignificante em comparação com a quantidade em águas mais profundas. Estudos sugerem que até 99,8% dos mais de 11 milhões de toneladas de plástico que entram no oceano todos os anos desaparecem em águas mais profundas.

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