Que Estado para o futuro de Portugal
Uma economia pouco competitiva não consegue suportar a máquina de um Estado pesado e burocrático. Mas é possível aprender com o sector privado alguns modelos de gestão que poderão funcionar no público. As reformas têm de ser feitas hoje ou alguém irá fazê-las por nós. A V Conferência Executive Digest, que decorreu ontem em Lisboa, recuperou um tema na ordem do dia.
Que Estado deve ter Portugal? Qual o papel que deve assumir? Como torná-lo mais eficiente? Estas foram algumas das questões debatidas pelo painel de oradores convidados pela Executive Digest para mais uma conferência, que contou com a presença de Joaquim Aguiar, administrador do Grupo José de Mello; Luís Mira Amaral, presidente do Banco BIC; Tawfiq Rkibi, reitor da Universidade Europeia; Paulo Carmona, presidente da EGREP; António Ramalho, presidente da Estradas de Portugal; Afonso Silva, presidente da ESPAP; João Duque, presidente do ISEG; e Álvaro Nascimento, professor da Católica Porto
«Um Estado que nos conduziu a uma crise de descontinuidades tem de ser reformado». Joaquim Aguiar, keynote speaker e orador da primeira mesa redonda, inaugurou assim o debate, afirmando que o País naufragou. Traçando o cenário do que levou Portugal à actual crise, o administrado do Grupo José de Mello abordou a actual crise, que descreve como uma «crise de descontinuidades». O passado não pode ser repetido e o futuro, dada essa impossibilidade, é incerto.
O presente, esse, é um cenário em que as três esferas da sociedade entraram em falência. Nos últimos 40 anos, recordou o keynote speaker, a esfera económica «refugiou-se nos sectores protegidos dos bens transaccionáveis», enquanto deveria ter empresas e sectores competitivos. A sociedade, que deveria ter «valores e comportamentos de modernização», «preferiu rendas distributivas obtidas por protecção política». E a política – a quem cabia a «condução da estratégia de modernização» – «aceitou subordinar a estratégia política às pressões das redes de interesses». Com este desvio, explicou Joaquim Aguiar, os dispositivos de regulação «foram destruídos» e criou-se a crise das descontinuidades com a acumulação de défices, o isolamento da economia, a perda de atractividade face ao exterior, a valorização por parte da democracia de «uma sociedade de interesses corporativos».
O Estado subsiste, assim, como um «parasita», que colhe recursos na sociedade através da tributação, e cada vez mais desta forma dadas as privatizações de empresas públicas. Mas também a sociedade «se alimenta do Estado», dependendo da política social. Não havendo geração de riqueza nesta relação, a economia fica sem recursos. E se no passado «caímos ao rio» com uma economia não competitiva, explicou, o futuro terá de passar por uma maior vitalidade nesta esfera. Enquanto a «economia tem de puxar», o «poder político tem de conduzir».
Reformar, reduzir e cortar
Para fazer a tão discutida reforma do Estado, qual o critério a adoptar na redução do seu peso? Como promover a eficiência dos serviços de administração pública? Que áreas devem ser entregues à gestão privada? A primeira mesa redonda seguiu o mote lançado por Joaquim Aguiar quanto ao futuro das esferas política, económica e social. O painel convergiu na urgência de se fazer a reforma do Estado, sob o risco de que outras entidades venham a assumir esta tarefa, concordando com o alerta deixado por Tawfiq Rkibi.
Para se concretizar a reforma do Estado é preciso ter «herança política, visão estratégica e capacidade de gestão», afirmou Luís Mira Amaral. Três elementos que «faltam ao actual Governo», criticou o actual presidente do Banco BIC, que desempenhou funções em Governos anteriores como ministro do Trabalho e Segurança Social e da Indústria e Energia.
Referindo que a mudança de paradigma necessária na estrutura estatal é também uma reforma ideológica, Mira Amaral acrescentou que não será o Executivo de Passos Coelho a cumprir a reforma do Estado. Não será também um próximo Governo do Partido Socialista a fazê-lo, assegurou.
Sobre um dos sectores mais afectados pelos cortes, o líder do BIC destacou o princípio do consumidor-pagador. O Sistema Nacional de Saúde não é gratuito, afirmou, apenas pago pelo contribuinte senão pelo consumidor. «Defendo que cada um paga de acordo com as suas possibilidades», limite após o qual surge então o Estado. No ensino público, Mira Amaral acredita que devem ser oportunidades iguais, independentemente das condições.
Com os actuais cortes na administração pública, «vamos ficar com um Estado mais bruto e mais ineficiente», remata, apontando uma «falta» de competências de gestão no actual Executivo. Referindo-se aos sucessivos cortes em postos de trabalho, o convidado sublinha que se está a «decapitar a alta administração pública» e «a saírem os competentes».
A diminuição da intervenção do Estado esteve em cima da mesa e foi uma das mudanças apontadas por Paulo Carmona, presidente da Entidade Gestora de Reservas Estratégicas de Produtos Petrolíferos (EGREP). Com excepção de serviços como a saúde e a educação, o Estado deve retirar-se de outras funções e concentrar-se na regulação; uma medida que o orador admite poder não ter impacto imediato na redução da despesa do Estado mas contribuiria para a racionalização dos sistemas e, por conseguinte, para um ganho de eficiência nas estruturas. Medidas como esta, sem necessariamente repercussão directa nas contas, têm uma importância acrescida na alteração de comportamentos. É que a dimensão do Estado português actual tem uma origem cultural, enraizada nas próprias estruturas. «Há resistência à mudança», manifestou Paulo Carmona.
Esta é uma resistência que existe dentro do próprio Estado, completou Tawfiq Rkibi. «O Estado está a resistir à própria mudança», explicou o reitor da Universidade Europeia criticando a tentativa de se reformar a máquina do Estado. É necessário criar uma reforma verdadeiramente estrutural e não de forma «segmentada», como tem vindo a acontecer, sublinhou.
«A reforma tem de acontecer porque o mundo mudou», acrescentou, numa leitura da situação do País na sua envolvente global de onde destaca a transferência do poder de decisão. Os centros de decisão «que hoje financiamos», referiu Tawfiq Rkibi, estão «limitados» na sua liberdade para decidir. A reforma tem de ser feita igualmente porque «a economia não consegue gerar riqueza para sustentar este Estado», com um sistema fiscal «muito pesado» e a burocracia tão combatida pelas tentativas de simplificação dos processos.
O líder da Universidade Europeia mencionou a necessidade de recuperar a competitividade que a economia portuguesa perdeu nos últimos anos, bem como a urgência de fazer regressar ao País os jovens com talento que emigraram.
Público vs. privado
Gerir uma empresa pública será como liderar uma organização do sector privado? O desafio de encontrar resposta a esta pergunta foi o ponto de partida para a segunda mesa redonda.
João Duque criticou as limitações à autonomia na gestão de empresas públicas, uma das diferenças entre os dois pólos analisados pelo painel. O presidente do ISEG criticou a condução da gestão dos orçamentos nas organizações públicas bem como a utilidade das avaliações de RH.
Os sistemas de incentivos aplicados nos sectores privado e público foram apontados como uma das principais diferenças entre ambos. António Ramalho, presidente da Estradas de Portugal, explicou como em situações de crise a gestão privada se foca nos resultados. O mesmo não acontece no sector público, já que «o Estado retira a responsabilidade sobre os resultados». «Há uma inversão dos modelos de responsabilização», apontou, para reiterar que falham alguns princípios de gestão «fundamentais». Os incentivos estão sempre presentes tanto na gestão privada quanto na pública, embora de formas diferentes. Em todo o caso, os dois sectores estão hoje «mais próximos do que parece», conclui.
Do sector privado, o Estado pode aprender as estratégias para garantir eficácia e a eficiência dos processos. Afonso Silva mostrou como os dois conceitos se relaccionam, mencionado que o Estado conta, por vezes, com os privados para assegurar a eficácia.
A gestão dos Recursos Humanos no público foi referida pelo presidente da Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública (ESPAP) como exemplo da ineficiência do Estado. Com uma estrutura de grande escala, a demora na aprovação de processos é recorrente. Orientando a gestão pública por níveis de serviços, os objectivos e missões deste sector poderão cumprir-se, existindo assim eficácia.
Álvaro Nascimento acrescenta a esta visão uma perspectiva mais abrangente: o problema da País não é só de gestão pública, afirmou, mas mais geral. «A economia de hoje é reflexo do passado», um passado onde se lêem também “erros” da gestão dos privados. O que aconteceu foi, para a o docente da Católica Porto, uma «diabolização» do Estado como origem dos problemas que levaram à crise actual.
Contudo, e respondendo à pergunta inicial, considera que os gestores têm de ser capazes de reorganizar departamentos, isto é, de criar mudanças na empresa. Mas nas organizações do sector público esta não é tendência comum. «O Estado cria novos institutos mas mantém os anteriores», rematou. Uma gestão eficiente deve ser orientada para objectivos, acrescentou Álvaro Nascimento, destacando a necessidade de ter «um foco centralizado» para se conseguir «uma gestão organizada».
Texto por Filipa Moreno