Privatização da TAP: Governo de Passos Coelho foi avisado um mês antes para esquema que “contornou” a lei, segundo a IGF

O processo de privatização da TAP, uma das principais companhias aéreas portuguesas, foi financiado com recursos da própria empresa, conforme revela a mais recente auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) às contas da TAP. A investigação confirma suspeitas levantadas há dois anos e aponta para um esquema “complexo” que, de acordo com a IGF, “contornou” a legislação vigente sobre sociedades comerciais. Além disso, a auditoria conclui que os ministérios das Finanças e da Economia foram informados sobre os termos deste negócio um mês antes de ser formalizado.

O relatório da IGF, solicitado pela Comissão Parlamentar de Inquérito à Gestão da TAP, expõe diversas irregularidades na atuação dos administradores e acionistas da empresa, incluindo o Estado. No entanto, um dos principais focos da auditoria é uma operação realizada nos últimos meses do governo liderado por Pedro Passos Coelho, relacionada com a privatização da TAP, segundo noticia o Público desta quarta-feira.

A privatização foi concluída em novembro de 2015, com o consórcio Atlantic Gateway, composto pela HPBG de Humberto Pedrosa (detentora de 51% do consórcio) e pela DGN Corporation do empresário norte-americano David Neeleman (com os restantes 49%), a adquirir 61% do capital da TAP SGPS. No âmbito desta operação, ficou acordado que, além do pagamento de 10 milhões de euros pela TAP, a Atlantic Gateway injetaria 226,75 milhões de dólares (aproximadamente 202 milhões de euros) no capital da empresa, sob a forma de “prestações acessórias”.

A “operação complexa” que financiou a privatização
A IGF detalha o processo de financiamento desta injeção de capital, apontando as suas consequências para a TAP. A 16 de junho de 2015, antes da privatização ser concretizada, mas já após o entendimento entre o Estado português e David Neeleman, a DGN, empresa de Neeleman, assinou um memorando de entendimento com a Airbus para a aquisição de 53 aeronaves. Este memorando, segundo a IGF, não foi possível obter durante a auditoria.

Posteriormente, a 16 de setembro de 2015, a Atlantic Gateway apresentou à Parpública (empresa que gere as participações do Estado, incluindo na TAP) a necessidade de modernizar a frota da TAP através da compra dos 53 aviões à Airbus, descreve o mesmo jornal, com base no relatório. Em contrapartida pela compra, a Airbus concederia um empréstimo de 226,75 milhões de dólares à Atlantic Gateway, que, por sua vez, usaria esses fundos para financiar a compra da TAP.

Em novembro de 2015, após a privatização estar fechada, os contratos de compra dos 53 aviões, inicialmente celebrados entre a DGN e a Airbus, foram transferidos para a TAP, que passou a ser o “verdadeiro comprador” das aeronaves. Neste momento, a TAP cancelou a produção de 12 aviões anteriormente encomendados à Airbus e assumiu a responsabilidade pelos novos contratos. Estes contratos incluíam uma cláusula que obrigava a TAP a pagar 226,75 milhões de dólares em caso de cancelamento, montante equivalente à injeção de capital feita pela Atlantic Gateway.

Dúvidas de legalidade
A IGF questiona a legalidade deste esquema, uma vez que a TAP não possuía capacidade financeira para cumprir com essas obrigações, sendo obrigada a recorrer a “processos de financiamento diversificados”. A IGF sugere que o montante de 226,75 milhões de dólares, supostamente injetado pela Atlantic Gateway, na verdade, provinha da Airbus, que a TAP se comprometeu a devolver posteriormente.

Este mecanismo, conclui a IGF, configura uma violação ao artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais, que impede uma sociedade de conceder empréstimos ou fornecer fundos a terceiros para aquisição de ações do seu próprio capital. A penalização para a violação desta norma implica a nulidade dos contratos ou atos unilaterais subjacentes.

Reversão da privatização e impacto financeiro
Embora a privatização tenha sido revertida, com a TAP agora totalmente detida pelo Estado, o contrato que vincula a companhia à compra dos 53 aviões da Airbus permanece em vigor. A TAP solicitou, em 2023, uma avaliação legal ao escritório britânico Norton Rose Fulbright, que concluiu a possibilidade de os contratos serem considerados nulos à luz da legislação portuguesa.

O impacto financeiro para a TAP é significativo. Até 2023, 28 dos 53 aviões já haviam sido entregues, obrigando a empresa a recorrer a financiamentos variados, cujo custo líquido já ultrapassava os mil milhões de dólares (cerca de 970 milhões de euros) em fevereiro de 2024. Além disso, a TAP ainda enfrenta outros 185,9 milhões de dólares em pré-pagamentos para as aeronaves que ainda estão em produção.

Governo foi avisado previamente
A auditoria da IGF revela também que a Parpública e os membros do Governo responsáveis pela privatização foram informados deste esquema antes da conclusão da venda. Um documento intitulado “Plano de Capitalização e Estrutura dos Fundos”, assinado por David Pedrosa e Maximilian Otto Urbahn, datado de 16 de outubro de 2015, foi enviado à Parpública e aos secretários de Estado do Tesouro e das Infra-Estruturas, Transportes e Comunicações, detalhando a operação com a Airbus. Este documento sublinha que a informação já havia sido partilhada numa reunião com a Parpública em setembro de 2015.

Na carta, a Atlantic Gateway justificava o empréstimo da Airbus com base numa relação comercial de longo prazo entre a Airbus e a DGN, e mencionava o risco de a TAP não conseguir cumprir com as encomendas já realizadas. A solução, segundo a Atlantic Gateway, passaria por cancelar as encomendas existentes e celebrar um novo contrato com a Airbus, que traria “condições mais favoráveis” para a TAP, com custos “abaixo do valor médio de mercado”.

Este alerta, contudo, não impediu a concretização de um esquema que, segundo a IGF, contornou a legislação portuguesa e deixou a TAP numa situação financeira ainda mais delicada.

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