Portugal com 4.000 desaparecidos por ano não tem base de dados (e falta coordenação)
O recente desfecho trágico do desaparecimento de Carolina Barbosa, uma jovem bióloga de 29 anos vista pela última vez a 10 de setembro em Vila Nova de Gaia, relembra a urgência de uma estrutura mais organizada e eficiente na gestão dos casos de desaparecidos em Portugal. Encontrada sem vida em outubro numa praia de Aveiro, Carolina faz parte de uma estatística preocupante: cerca de quatro mil desaparecimentos são registados anualmente no país. Contudo, não existe uma base de dados nacional que integre todos os casos e facilite a sua gestão por parte das várias entidades policiais envolvidas.
Após a descoberta do corpo na Praia da Barra, em Aveiro, em avançado estado de decomposição, a Polícia Judiciária (PJ) confirmou a identidade de Carolina através de um teste de ADN. “O caso continua com a PJ. Não temos o resultado da autópsia e o caso está em segredo de justiça”, declarou o irmão da vítima, Francisco Barbosa, ao Diário de Notícias. Esta ausência de centralização de dados complica o acompanhamento dos casos e a coordenação das autoridades, uma falha identificada pelos próprios agentes envolvidos.
Necessidade de um sistema unificado: opinião dos especialistas
A falta de um sistema nacional de registo e acompanhamento de pessoas desaparecidas em Portugal é uma lacuna que o diretor da Unidade de Informação Criminal da PJ, José Leal, considera urgente. “Não é garantia que a PJ tenha todos os registos das comunicações de pessoas desaparecidas”, reconhece Leal em entrevista ao Diário de Notícias, enfatizando a necessidade de uma solução semelhante à adotada em Espanha, onde foi criado o Centro Nacional de Desaparecidos, sob a alçada do Ministério do Interior. Em Espanha, todas as forças policiais alimentam a base de dados, permitindo uma gestão centralizada e mais eficiente dos desaparecimentos.
O subintendente Filipe Silva, da PSP, partilha da mesma visão. “Em Portugal, o Ministério da Administração Interna poderia criar algo similar. Atualmente, as queixas de desaparecimento registadas pelos vários órgãos policiais [PSP, PJ, GNR] não são centralizadas, o que limita a eficácia na resolução dos casos”, sublinha. Em situações de aparecimento de pessoas, vivas ou mortas, a ausência de um sistema centralizado dificulta o encerramento e a atualização dos registos de desaparecidos, levando a uma potencial desorganização de dados.
Desaparecimentos voluntários e limitações legais
Entre os vários tipos de desaparecimento, o inspetor-chefe da PJ, Miguel Gonçalves, responsável pela Secção Central de Investigação Criminal, destaca as situações de desaparecimento voluntário. “A pessoa pode, por vontade própria, optar por não contactar com a família, amigos ou cônjuges. Quando localizamos essa pessoa e ela expressa o desejo de não ser encontrada, apenas informamos o comunicante de que a pessoa está bem, mas não quer ser encontrada”, explica Gonçalves, acrescentando a complexidade destes casos, onde a privacidade e a liberdade individual entram em jogo.
Sobre o conhecido mito das “24 ou 48 horas” de espera antes de comunicar um desaparecimento, Gonçalves esclarece que ele não existe formalmente. “Qualquer quebra significativa de rotina que leve a suspeitas deve ser comunicada de imediato às autoridades”, reforça. No momento do registo, a polícia procede a uma avaliação de risco, baseada em um questionário de cerca de 20 questões ao comunicante, permitindo classificar o desaparecimento como de risco baixo, médio ou elevado.
Investigação policial: procedimentos e restrições
Em casos em que há suspeitas de crime, as ferramentas à disposição da PJ ampliam-se significativamente, permitindo o uso de meios de vigilância e verificação de registos bancários, entre outras ações. Gonçalves sublinha que “contrariamente ao que muitas pessoas possam pensar, a lei limita o uso imediato de certas técnicas de investigação, como escutas telefónicas e verificações de contas bancárias, que só são autorizadas em cenários com indícios de crime”.
Nas investigações conduzidas pela PSP, onde não há suspeitas de crime, as diligências incluem igualmente uma caracterização de risco e a mobilização de recursos como drones e canídeos, em situações onde se presuma risco de vida para o desaparecido. “Se sabemos que uma pessoa desaparecida fazia um percurso regular, por exemplo, verificamos essa rota para determinar se sofreu uma emergência médica ou outro incidente”, explica o subintendente Filipe Silva. Quando se identificam indícios de crime, o caso passa automaticamente para a alçada da PJ.
Sensibilidade dos casos de desaparecimento: uma experiência marcante para os agentes
Os agentes da PSP e os inspetores da PJ que trabalham em casos de desaparecimento revelam a complexidade emocional e profissional destas situações. “É um tema particularmente sensível”, confessa Gonçalves. No seu caso, ele revela que é prática fornecer o contacto direto de um elemento da equipa ao comunicante, para que este tenha algum acompanhamento durante o processo de busca. Filipe Silva, por sua vez, recorda um caso que o marcou pessoalmente: o de um jovem que, incapaz de lidar com o fim de um relacionamento, foi encontrado sem vida dentro de um carro, após um trágico suicídio.
Os desaparecimentos em Portugal levantam questões sérias sobre a organização e eficiência do sistema de resposta, que as forças policiais defendem poder ser melhorado com uma base de dados centralizada. As autoridades esperam que uma estrutura nacional, como a existente em Espanha, possa permitir um acompanhamento mais eficaz dos casos, garantindo melhor coordenação e uma resposta mais célere para as famílias afetadas.